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sábado, 24 de novembro de 2007

O Marquês

(Imagem: Girl with a dog de Karen L. Gore)

Mais uma vez, Mar Arável, aceitando um desafio seu, vou tentar escrever algo, com alguma coerência, acerca do Marquês, o meu último cão em Chaves. Como sabe, as recordações são, na maior parte das vezes, bastante indomáveis…
Espero que depois possa falar do Marquês aos seus serras da estrela e que eles o oiçam com agrado…


O Marquês era um lindo cão (o mais bonito para mim), arraçado de lobo de Alsácia, como se designava então o pastor alemão (por razões que dariam outro post), que nasceu lá na quinta onde eu vivia de uma mãe que se chamava Layca.
Desde muito cedo, ainda no “ninho”, me adoptou como sua companheira privilegiada (ou eu a ele, não sei…) e, ainda trémulo de patas, vinha atrás de mim quando das minhas constantes visitas, deixando o conforto da sua mãe.

Confesso que o visitava com exagerada frequência, por um lado porque adorava aquela bolinha como só as crianças sabem adorar e por outro, porque tinha receio que desaparecesse misteriosamente como aconteceu a tantas ninhadas de gatos que vi nascer e, provavelmente, aos outros cachorros que eventualmente nasceram com ele. Não me lembro se os houve ou se soube sequer que os tenha havido. Como sabem há muita coisa que a criança não sabe mas intui…

Como já referi e certamente ainda se recordam, andava quase sempre sozinha. Não por opção minha, claro, mas por falta mesmo de outras crianças que me acompanhassem em brincadeiras. Tinha já dois irmãos mas dada a diferença de idades, muito mais novos do que eu, não me acompanhavam nas brincadeiras. Por vezes aproveitava a companhia de alguma amiga da escola que entretanto aparecesse por lá, mas a minha mãe era um pouco esquisita em relação às minhas amizades e eu tinha o condão de escolher invariavelmente as menos “desejáveis”…

Foi então aí que o Marquês, com o seu sorriso de orelha a orelha e andar saltitante, veio suprir (quase) essa falta de companhia. Era como uma sombra. Encostava-se a mim e olhava-me com aqueles olhos castanhos, tão ternurentos, que me deixavam completamente rendida.
De manhã, acompanhava-me à escola (na época era hábito os meninos irem à escola sozinhos e a pé) e aguardava deitado encostado ao portão que chegasse a hora do recreio.
Era nessa hora que eu vinha junto dele e repartia invariavelmente o meu lanche com ele. Creio que ficávamos ambos com fome mas isso não tinha interesse nenhum.

Era inteligente, creio. Sabia perfeitamente que não lhe era permitido entrar no pátio do recreio pelo que aguardava pacientemente da parte de fora, junto ao portão o final das aulas. Ou então iria dar os seus passeios, não sei. O que sei é que quando, depois das aulas, chegava ao portão, aí estava ele à minha espera para regressarmos juntos a casa aceitando, com ar feliz alguma festa que as minhas amigas (as que não lhe tinham medo), lhe faziam.

Os tempos passados a brincar e a explorar os cantos insuspeitáveis dessa quinta tiveram sempre a sua companhia. Descia comigo à mina (tínhamos uma mina de água bem quente na quinta, estávamos junto das “Caldas”de Chaves) quando eu ia baptizar as minhas bonecas e desfazer algumas, claro.
Nadava no rio enquanto eu lavava as roupinhas no lavadouro da margem, vindo depois sacudir-se energicamente para cima de mim. O que eu me ria!...

Nessa quinta havia patos que saíam de manhã da capoeira seguindo absolutamente sós, até ao rio onde passavam o dia. No final da tarde, numa hora que só eles sabiam, regressavam da mesma forma ao lugar onde se alimentariam e passariam a noite. Se algum mais inexperiente ou mais distraído se perdia da fila ou ficava para trás, era o Marquês que, com toques de focinho o reencaminhava para a fila.

Na ocasião todas estas coisas eram absolutamente banais para mim; faziam parte do meu quotidiano da mesma forma que o beber água das termas num copo achatadinho nas noites de verão, atravessar o rio para a quinta do meu tio saltando de pedra em pedra a que se chamavam poldras (que ainda existem mas que não sei se seria capaz de usar agora), correr com ou sem Marquês pelo jardim do Tabulado encontrando bons esconderijos, ir apanhar escaravelhos quando infestavam os batatais (talvez ainda não se usassem os insecticidas) e sei lá que mais…

Bom, mas tudo tem um fim e para mim, o fim desta vida solta e feliz, chegou quando o meu pai foi transferido para o Porto e com ele se deu a “transferência” de toda a família.
Eu tinha na altura nove anos e ia para o então primeiro ano do liceu.
Custou-me deixar tudo: os grandes espaços, os avós, com quem sempre tinha vivido, a minha tia que era mais irmã mais velha do que tia e, mais do que tudo, o Marquês…

Ainda hoje sofro a pungência da dor que senti quando o abracei para o deixar…

Voltei lá nas férias grandes do ano seguinte para passar lá uns tempos e para ir ao casamento da minha tia mas, do Marquês, nem sinal.
Nunca soube o que lhe aconteceu, nunca mo disseram. Mas ainda hoje, quando penso nos momentos que partilhámos, me dá uma imensa vontade de chorar de talforma consigo sentir ainda a saudade.

Hoje sou uma mulher mais de gatos. Embora tenha sempre cães de quem gosto muito. Mas o Marquês mantém ainda o seu lugar, absolutamente insubstituível, guardado bem fundo no meu coração de menina.

1 comentário:

Mar Arável disse...

Bela descrição

Um dia destes farei referencia

aos meus - o Lau - o Dique e a Laica.Uma família.

bjs