Páginas

quinta-feira, 23 de agosto de 2012

"Lost Boy"

Da série "Lost Boys" de Miguel Ministro


Sente no rosto o poder avassalador do punho que o golpeia.

A dor é imensa mas não importa. A sua ausência é muito mais cruel.

Habitualmente não sente nada, não deseja nada, não aspira a coisa nenhuma.

Não ama nem odeia.

Vagueia ausente nessa ubíqua almofada do desapego.

Nesse marasmo perverso que o persegue mas já não o inquieta.

Indiferença? Solidão? Tédio? Apenas isso o rodeia.

Medo não. Medo não sente. Aliás, não sente nada.

Apenas esse imenso enjoo de nada sentir…

sexta-feira, 17 de agosto de 2012

"O Teu Rosto Será o Último" de João Ricardo Pedro


Muito, muito bom.

Uma agradabilíssima surpresa vinda de um autor estreante mas que, seguramente, virá a dar muito que falar.

Comecei por gostar muito da forma de escrita de João Ricardo; forte, se bem que bonita, e com muito carácter. É uma escrita com identidade própria. Utiliza recursos e vocábulos que, esgrimidos de outra forma ou em contextos diferentes poderiam ser vulgares ou maçadores mas que, no seu caso, enriquecem e dão cunho próprio à escrita.

Depois, gostei da estrutura do romance porque nos conta, de facto, uma história mas nos permite ter uma parte activa na sua construção. Pelo menos deixa-nos com essa ilusão.

A narrativa é composta por um conjunto de episódios aparentemente soltos, autónomos, mas que se vão encaixando de modo a criar para nós uma história coesa.

Uma história sem pontas? Não creio. Julgo que nos compete a nós atar algumas. Mas, mesmo assim, uma boa história impregnada de momentos alegres, disparatados, tristes, de grande dor, enigmáticos, e aqueles absolutamente corriqueiros, do quotidiano de qualquer um. Uma história complexa acerca de um conjunto de pessoas que constituem uma família, mas também a história de cada um em particular sem, contudo, se perder o sentido do todo.

Eu vejo como personagem fulcral desta narrativa Duarte. Não sei se é a personagem que suscita sentimentos mais fortes, a que nos fica a martelar na memória. Porém é aquela que vai atravessando todo o livro; aquela com quem vamos crescendo e tendo experiências de todo o tipo; vivendo. É através dela que vamos conhecendo três gerações de uma família bem como de mais umas tantas pessoas que a rodeiam.

Todavia, e poderá parecer paradoxal, Duarte é uma personagem enigmática. Dotada de grande talento musical (que rejeita), vai vivendo em quase constante interrogação e por isso vai-se descobrindo também (sobretudo?) através do que as outras personagens vão desvendando sobre ele.

O livro inicia-se no dia vinte e cinco de Abril de 1974 mas começa muito antes, ainda no período da ditadura, quando Policarpo vende a propriedade, numa aldeia no sopé da Serra da Gardunha, ao seu amigo e médico Augusto Mendes, para sair do país.

Parte muito importante na narrativa são as cartas que Policarpo envia todos os anos ao seu amigo, aliás como havia prometido, até ao fim da sua vida.

Continua por Queluz onde António, filho de Augusto Mendes, vive com a sua mulher que havia conhecido antes de sair para uma das suas comissões na guerra do ultramar e tinha aceitado ser sua “madrinha de guerra” (quem é que actualmente sabe bem o que é isso???) e o seu filho Duarte.

E é assim, entre as faldas da Gardunha, Queluz, e todos os locais que as cartas de Policarpo nos deixam vislumbrar, que se vai apresentando perante o leitor um puzzle subtil onde as mais insignificantes peças (os episódios mais banais) se vão revelar fulcrais para o desenrolar da narrativa.

A não perder mesmo!

terça-feira, 14 de agosto de 2012

Tears


Imagem: "An ocean of tears" daqui


A deep sadness came to stay and made her bed in my most insightful feelings.

And now I don’t know what to do with all these tears …

Maybe an huge ocean of my own where I’ll slowly go drown.

segunda-feira, 13 de agosto de 2012

"The Sense of an Ending" Julian Barnes


Acabei ontem de ler este livro e, se bem que o considere um livro bom, ficou um pouco aquém das minhas expectativas motivadas, obviamente, por críticas que a ele se referiam de forma muito abonatória.

Li-o na sua versão original (em inglês) pelo que nem sequer poderei justificar essa pequena desilusão por perdas na tradução. Pelo contrário, poderá talvez, é dar-se o caso de não conseguir apreender algumas subtilezas da língua dado que a não utilizo comummente.

É um livro reflexivo e interessante, claro. Foi “Man Booker Prize 2011”…

Contudo não foi um daqueles livros que me agarrou de uma forma apaixonada. A verdade é que também não tive vontade de o largar…

Conta-nos uma história de vidas aparentemente normais, mornas e prosaicas. Até que, com a continuação da leitura se vai percebendo que, afinal, não são nem mornas, nem prosaicas e, seguramente, nada comuns.

Todo o livro está eivado de considerações filosóficas e de reflexões de vida mas que se inserem perfeitamente no contexto narrativo, sem que apareçam como conceitos filosóficos de pacotilha, inseridos a martelo, para eruditizar a coisa.

Aliás, creio ser exactamente a pertinência destes que faz com que o livro não seja uma história mais ou menos vulgar (em termos de enredo literário) contada de forma assaz ”soft”.

Temos Tony Webster, o narrador, que, agora em plena meia-idade, nos começa a contar a sua história e dos seus três amigos mais chegados, em plenos anos 60 quando eram um grupo de adolescentes.

Estamos na primeira de duas partes que constituem o livro. Dos outros dois amigos quase não reza a história, são quase totalmente irrelevantes, meros adereços, mas com Adrian Finn tudo é diferente.

Adrian é aquele amigo que se destaca por uma miríade de razões. Todos tivemos ou conhecemos alguém assim; alguém que todos disputávamos para “melhor amigo” e que nos custava ter de partilhar. Era mais, sério, mais inteligente, mais à vontade na exposição das suas ideias perante professores e colegas, aquele cujas reflexões e conclusões eram admiradas e, enfim, incontestadas. Era também o que parecia ter mais certezas e, além disso, um aluno exemplar.

Contudo era um grupo de adolescentes comuns, sedentos de vida, de sonhos, de sexo, de fantasia.

Chega a altura de irem para a faculdade e, enquanto Anthony a frequenta em Bristol, Adrian vai para Cambridge e vai-se, paulatinamente, perdendo o contacto que todos haviam jurado manter para o resto das suas vidas.

Tony mantém uma relação com Verónica até ao final do seu tempo de faculdade. Não dá certo e dá-se a ruptura. Acontecem alguns episódios insólitos nesta relação, mas sem grande interesse (pelo menos em aparência).

Entretanto é informado por Adrian que é agora ele quem mantém uma ligação com Verónica. Responde a Adrian sem dar muita importância ao assunto e, tempos mais tarde recebe a notícia do suicídio do seu amigo.

Estranha-o, reflecte muito em torno deste acontecimento, mas acaba a primeira parte contando, muito brevemente como se desenrolou depois a sua vida até chegar ao que é hoje; uma pessoa de meia-idade, divorciado, se bem que mantendo relações cordiais com a sua ex-mulher, com uma filha, afastado já das suas obrigações profissionais mas mantendo uma rotina de ocupações.

Como dá para perceber nada de especial, nenhuma novidade, nada que certamente não tenha acontecido a todos nós, os de meia idade (com suicídio ou sem suicídio à mistura) … Que é feito dos sonhos da adolescência? Da certeza de que íamos ser donos do Mundo?

E então entramos na segunda parte do livro em que Tony recebe uma comunicação de uma advogada que o informa que é o herdeiro da recém-falecida mãe de Verónica. Essa herança consiste numa importância em dinheiro e no diário de… Adrian.

É então a partir daqui que, no meu ponto de vista, o livro começa verdadeiramente a ter interesse. É a partir daqui que Anthony vai pôr em causa a “exactidão” das suas memórias. É aqui que elas são colocadas numa outra perspectiva, a do futuro. É aqui que já não sabe o que realmente se passou e o que a sua memória seleccionou para manter. É aqui que se surpreende…

Foi aqui que, também eu, fiquei com algum receio de reperspectivar as minhas memórias…

A ler.

domingo, 12 de agosto de 2012

O Meu Poema

Aguarela da série "Mascaras" de Miguel Ministro

Por vezes as palavras demoram a acordar.

Depois, surgem sem chama, inócuas, desnecessárias.

Negam-se a fazer sentido.

Não me lêem. Não me adivinho nelas.

Preciso de as iludir, de as rasgar, de lhes arrancar as máscaras,

de lhes soprar os fumos, as névoas, o que nelas é breve.

De as soltar dos silêncios aparentemente anódinos

e obrigá-las a estar aqui sem limite, audazes, maliciosas, incendiadas

e então, só assim, poderá nascer o meu poema.

quarta-feira, 8 de agosto de 2012

"O Rastro do Jaguar" de Murilo de Carvalho


Um livro que há já uns tempos tinha intenção de ler.

Foi prémio Leya 2008 o que, à partida, lhe confere algum interesse.

Acabei por lê-lo emprestado e, por isso, teve prioridade em relação a uma extensa pilha que se vai acumulando à minha volta.

Foi-me emprestado como sendo um livro extraordinário daí a sua leitura imediata.

Pois bem. Eu não o catalogaria no rol daqueles livros que considero verdadeiramente extraordinários mas é, sem dúvida, um bom livro.

Estamos em Congonhas do Campo algures em Minas Gerais no virar do século XIX. Aí, o nosso narrador, Pereira, contemplando as estátuas dos “profetas” esculpidas em pedra sabão, no adro da igreja pelo “Aleijadinho” (António Francisco Lisboa), e saudoso da sua amada Francisca, propõe-se narrar a vida de seu amigo Pierre, dele próprio e de algumas pessoas cujas vidas tocaram ou que vieram a fazer parte deste riquíssimo percurso que foram as existências de ambos.

E aí vamos sendo transportados desde Paris onde ambos eram elementos do exército até ao Brasil (depois Argentina, Paraguai…) onde aportamos exactamente num período histórico conturbado em que se desenrola uma guerra contra o Paraguai (guerra da “Tríplice Aliança” uma vez que se haviam aliado a Argentina, o Uruguai e o Brasil para combater o Paraguai que tinha invadido a província brasileira do “Mato Grosso”).

É um livro baseado em factos reais, muito bem documentado e que nos conta bastante pormenorizadamente o já referido conflito e nós dá, em imagens muito vívidas, conhecimento dos momentos duros de uma guerra que foi, em muitos momentos, sangrenta, desumana até ao limite do concebível. Menciono, por exemplo, no final, o massacre das crianças-soldados…

Mas, quanto a mim, esta não será a perspectiva mais importante do livro. Pelo menos não foi aquela que mais me impressionou, se bem que tenha apreciado saber mais acerca deste momento histórico. No meu ponto de vista o que aqui ressalta é a situação dos povos autóctones da região; a perda inexorável dos seus espaços, das suas raízes e, consequentemente, da sua identidade enquanto povos. Alguns deles preferindo o extermínio à aculturação.

É o caso dos Aimoré (Botocudos) que vamos seguindo, com Pierre tentando encontrar o povo de Firmiano que havia sido levado daquela zona, anos antes, por Saint’ Hilaire, mas também buscando as suas origens, a sua identidade.

Essas vão ser mais tarde encontradas junto do povo Guarani com quem Pierre se identifica e vem a ser por ele considerado um dos “adornados”, o mais importante profeta, aquele que o povo aguardava, tal como profetizara Ñamandu, o seu deus, para os conduzir em glória `à”Terra Sem Males”: o Jaguar

Pereira vai-nos narrando todo este passado recorrendo à sua memória, é certo, mas sobretudo a cartas e documentos escritos por Pierre, por Firmiano e por ele, dado que passou todo esse tempo como repórter de guerra a soldo do “Le Figaro”.

Ao mesmo tempo vai-nos deixando momentos de um presente nostálgico, ora contemplando os seus profetas, ora abraçando o “fantasma” da sua adorada Francisca. Presente que o leva a reencontros com personagens como Mateus e Benedito.

Presente que o vai levar a protagonizar, a ele próprio, uma demanda improvável.

De realçar a importância que aqui toma a alusão à peça de Wagner “Tanhauser Ouverture” que Pierre adorava, que tocou na Ópera de Paris e que, para mim, funciona quase como uma metáfora em relação à sua vida.

Um livro muito bom, sem dúvida, muito preciso, precioso no que concerne a documento histórico, bem escrito, numa linguagem fluida e agradável.

A ler, sem dúvida.

segunda-feira, 6 de agosto de 2012

A Borboleta

Borboleta castanha

Era uma vez uma borboleta.

Era uma borboleta feia. Daquelas sem cor, de asas curtas e grossas e corpo pesado.

Ainda assim uma borboleta.

E porque quando dizemos “borboleta” nos lembra poesia,

tal como flor, estrela, luar, silêncio,

decidi pegar nela e enfeitar um poema.

Mas a borboleta era feia.

As asas eram feias. O corpo era grosso e pesado.

E girava desengonçadamente pela minha cozinha.

Mesmo assim custava-me desistir dela

e então

quis colocá-la aqui e compor um poema feio.

Estava prestes a fazê-lo quando o Envie, o meu gato vermelho, saltou e a comeu.

Compreende-se. Ele não gosta que eu faça poemas feios…

quinta-feira, 2 de agosto de 2012

Viver

"The Triunph of The Death" by Pieter Bruegel The Elder


Misteriosos pensamentos estes que me assolam em dias ocos.

Assustadores porque estranhos e inesperados,

estranhos de tão assustadores no vazio opaco desses dias.

Pensamentos que se me agarram, me prendem a vontade

para, lenta e inexoravelmente, se insinuarem no mais recôndito de mim.

Afinal, viver pouco mais é que um pequeno ruído distante…

Um pequeno barulho, ao longe, feito segredo.