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segunda-feira, 26 de dezembro de 2022

Mais um Natal



Mais um Natal. 

Adoro o Natal 

mas há sempre uma gota de melancolia 

pendurada no cós das luzes, 

das cores, dos cheiros, dos sons. 

É que são essas luzes, 

essas cores, esses cheiros, esses sons 

que me levam pelos sulcos do tempo 

a espreitar outros natais.

Os natais das tranças feitas pela mãe, 

das pinhas a abrir na lareira,

do chocolate quente pela manhã 

adoçado pela alegria dos tios, 

dos avós, dos pais

todos tão lindos e tão eternos.

E então inquietam-se as palavras 

que ficam pequeninas e se prendem nos olhos

- assim como que a espreitar segredos.

São os segredos dos natais de hoje. 

Os natais das árvores que já não cheiram a pinho 

mas se erguem majestosas 

em autênticas explosões de luz e cor, 

os natais dos irmãos, dos cunhados, 

dos sobrinhos de risos alegres e cheios de futuro, 

da mãe que já não faz tranças 

e que foi, 

paulatinamente, 

perdendo a sua eternidade, 

dos amigos cada vez mais presentes na lembrança, 

como na vida 

mas, sobretudo, 

os natais que vislumbro no olhar limpo do neto 

quando, já tranquila, 

lhe afago os caracóis 

e lhe vou sussurrando promessas de 

“para sempre”.

 

 

Celeste Pereira

2022-12-22

 

 

 

 

quinta-feira, 11 de agosto de 2022

Descaradamente, como uma criança


Há quarenta e três anos eu tive um filho.
E era lindo esse filho.
Julgo que era lindo
como todos os filhos que nascem de nós.
Há quarenta e três anos
eu soube o que era submergir no torvelinho do assombro.
Soube que os sonhos
podem vencer a essência dos impossíveis
e tornarem-se realidades lindas
concretas e suaves como a pele das flores.
Soube que daí para a frente nada seria igual,
acabar-se-iam as horas vazias,
os espaços em branco
e tudo se concentraria nessa espécie de prodígio,
nessa vida pequenina que eu segurava nos braços
e que, quase inexplicavelmente, amava até ao infinito.
Sorvi-lhe até à exaustão a doçura do olhar,
a macieza da pele e a candura dos cheiros.
Passei a saborear-lhe o trajecto
ao mesmo tempo que surgiam medos insuspeitados
- mas inequívocos -
que me enchiam o ventre de ecos
e me concediam a ferocidade do vento.
Foi há quarenta e três anos que,
descaradamente,
como uma criança, abracei uma nova primavera.
Parabéns
Miguel!
2022-08-10

segunda-feira, 8 de agosto de 2022

Com o sol colado na pele


Não te escrevi nada anteontem mamã,
dia em que completaste uns maravilhosos noventa e cinco anos,
não deu tempo.
Mas consegui estar contigo os minutos precisos para cantar
parabéns
e te dar
um abraço
pleno de sussurros inaudíveis,
daqueles que só o coração entende.
Estavas bem, alegre e conversadora no teu falar de agora.
Acho que gostaste que estivéssemos contigo
embora nessa nesga de compreensão que ainda te resta.
Quase apagaste aqueles últimos tempos imperfeitos
em que te retiraste para dentro de ti,
te escondeste da vida
e nos deixaste a respirar ventos filtrados de geada
que nos enchiam de silêncios um tanto humilhados.
Anteontem estiveste connosco.
Não contiveste as palavras
que falaste cheia de convicção e urgência
– embora pudessem não querer dizer o que querias
ou serem inteiramente perceptíveis –
nem os sorrisos com que nos encantaste.
Gostei de ti assim mamã.
Fiquei com o sol colado na pele
e ainda hoje lhe sinto o paladar.
2022-08-08

segunda-feira, 25 de abril de 2022

Sempre Abril

Aguarela de Maria Manuela Silva



Acordo de olhos fechados para os sonhos urgentes.

Há em mim como que uma desordem de cores 

que derrota a madrugada 

e se agarra com força ao interior da pele.

 

Mas hoje não.

Hoje não é dia de derrotas, angústias ou outras renúncias.

Hoje é dia de esbanjar memórias 

e gastar muitas palavras nas lembranças boas.

 

E recordar o espanto, a esperança, 

o mundo de vontades em torvelinho 

que eu vi,

que eu vivi; 

 

lembrar o desejo de geometrias de linhas rectas, 

sem ambiguidades ou hesitações,

que fez esquecer medos, acendeu muitas palavras 

e as cerrou em punhos que elevou bem alto; 

 

festejar com os cravos rubros, vindos não sei de onde, 

que rapidamente se foram espalhando 

até se fixarem nos canos frios das armas em repouso 

no colo de militares de olhar feliz;

 

e ouvir a descoincidência das gaivotas e das grândolas cantadas em coro.

 

Hoje é dia de dar voz ao espanto. 

Dia de esquecer ruínas e desencantos 

e dar força aos sonhos, 

aos tais, 

aos urgentes, 

aos que nos ferram os ossos,

aos que nos constroem,

aos que reordenam as cores 

e mantêm vermelhos os cravos de Abril

aos que nos obrigam a renascer.

 

 

2022-04-25

 

quarta-feira, 6 de abril de 2022

Angústia


Será que ainda me encontro em mim?
Será que no restolho desta raiva,
desta incredulidade que se faz aperto no peito
e me enviesa os pensamentos,
desta como que distância
que se interpõe entre mim e as imagens que me chegam
e nas quais não quero,
não posso, acreditar
irá sobrar algo de mim?
Irá sobrar algo de alguém?
Serei capaz de olhar para a humanidade da mesma forma?
com a mesma fé e acreditar que somos pessoas?
Será que posso matar a desistência?
Julgo que não.
Algo se quebrou em mim
e ficou por aí empilhado nas muitas palavras que gostaria de gritar
e não consigo;
um charco de vergonha que se esconde por trás dos dentes que cerro com muita força.
Julgo que haverá,
quem sabe um dia,
um momento em que o grito há de fugir.
Um momento em que se quebre este casulo apertado em que me refugio,
esta angústia.
Entretanto, inacreditavelmente não resisto à armadilha da curiosidade
(tão doentia)
e assisto do sofá (inimaginável!) ao desmoronar de todos os sonhos,
de todas as crenças que sustentam as pessoas,
de tudo aquilo com que se pensava poder lavrar um futuro.
Será que ainda, algum dia, me lembrarei de toda a
poesia que existe no olhar de uma criança?
Celeste Pereira
2022-04-05

Artur


Como é que eu sei, Artur, que não és um sonho?
Sabes,
é que eu amanheci nesse dia,
no dia em que nasceste,
quase sem saber que amanhecia.
A luz não chegava,
gastava-se toda em hemisférios
que eu não conhecia
e por onde cavalgavam
ecos de surpresa e de medo.
Mesmo assim eu sonhava.
E ia,
devagarinho,
limando todas as arestas da realidade,
calando todas as palavras que não fossem de encantar
e redesenhava-as muito bem com contornos de ternura.
E tu chegaste,
assim,
preso a elas,
que por sua vez
se encontravam muito juntinhas
a embalar-me a alma.
Não te sorvi o cheiro,
e foste tão intocável
como a manhã que não amanhecia.
Mesmo assim,
distante,
talhaste em mim um encanto que ainda hoje não entendo.
Um encanto todo ele da matéria dos sonhos;
um mundo de ternura com pozinhos de magia.
E persiste ainda hoje que já te toco,
que já te cheiro, que já te sinto o colo,
que alinhavo palavras contigo
e as vamos vestindo de espanto e ternura,
como nos sonhos.
Como um sonho...
Como sei, Artur, que não és o meu sonho mais belo?

quinta-feira, 24 de março de 2022

Coisas de filhos

Para as comemorações do dia do Pai pediram ao meu filho que completasse a frase "ser pai é..." para colocar num post it num painel que organizariam para o evento.
Aqui vai "a frase" do meu filho da qual muito me orgulho:
Ser pai é…
Passar inúmeras noites a acordar com ele a chorar e apesar de lá chegar para o acalmar, ouvir “mamã”;
É dormir num quinto da cama porque o novo dono da casa resolve dormir na perpendicular, e no resto que resta da noite acordar de repente com um pontapé muito bem aplicado no meio da cara;
É tomar o pequeno almoço rapidamente porque antes de vir para o Externato é crucial ver “a avó de óculos que canta” (para as poucas pessoas que ainda não viram as parecenças, é o Kurt Cobain);
É receber uma chamada a dizer não se preocupe pai, ele está com um corte que ocupa a testa toda porque resolveu descer o escorrega pelo lado errado mas está bem;
É ir atrás dele a correr com uma faca na mão e a rir-se, porque eu desviei os olhos 5s enquanto comia alguma coisa;
É pô-lo no castigo e estar a vê-lo a rir-se durante todo o período, e no fim ouvir “outra vez”;
É passar o jantar todo a ouvir “amanhã patatas” quando comemos arroz, e “amanhã rôs” nos dias que comemos batatas, e jantar rapidamente porque esteve o dia todo sem ouvir a “avó” e portanto antes de deitar tem de ver como é que ela está;
É passar cerca de 1h a fazer Kms no quarto dele para trás e para a frente para ver se adormece, o que se torna um bocado complicado quando é nessa altura que ele decide fazer o resumo do dia, infelizmente com palavras que ainda não constam do meu vocabulário.
Finalmente, é sair do quarto dele com um sorriso de orelha a orelha, a pensar que vendo bem o dia não podia ter corrido melhor, porque pouco antes de adormecer, ele levanta a cabeça e ouço “amanhã papá”, recebo um beijinho e uma festa na cara e
um abraço
.
Pai do Artur Pereira

terça-feira, 15 de março de 2022

Corredor humanitário



Há uma mágoa seca estampada nos rostos de respirações inquietas e olhares vazios;
um desgosto sujo nas mãos que apertam com força os destroços que penduram no corpo desconfiado e tenso;
um silêncio espesso,
ferido,
daqueles que carecem de vida
mas são mais eloquentes do que todas as palavras que possam ser ditas
ou escritas, ou gritadas.
São horas atravessadas numa geografia sem nexo sempre com a madrugada derrotada agarrada aos ossos;
um tempo enorme fechado na angústia das memórias perante um presente estilhaçado;
uma procura inquieta do lugar onde ficaram os pensamentos
que agora parecem ser a essência do impossível
ou apenas o aviso cruel das feridas do futuro,
e do medo,
e da raiva
que nasce da impotência.
Há uma mágoa seca estampada naqueles rostos.
Há um nevoeiro intenso e frio todo estendido por dentro de mim
e não há mais nada.
Celeste Pereira
2022-03-15

quarta-feira, 9 de março de 2022

O medo (versão Março de 2022)



O medo começa num ponto frio no meio da barriga
e cresce em ondas de fogo e gelo
criando buracos profundos
e esquinas vivas onde sento o desespero.
Insinua-se nos mais secretos pensamentos
e enfeita-se de cinzas e roxos
e castanhos muito feios e muito baços
que cobrem escombros
e ensombram os rostos vestidos de renúncia.
O medo torna o ar duro denso e ácido
e fá-lo crescer demais na garganta impedindo-me de gritar
e tornando as respirações dolorosas e crespas,
de gumes moldados na teimosia de não querer acreditar.
E mastigo-o.
Mastigo-o com raiva e desalento,
sem parar e sem mesmo me dar conta que o faço.
E vai crescendo arrastado pelos edifícios em chamas,
pelos hospitais improvisados,
pelas crianças de olhares parados,
pelas ruínas das vidas que leio nesses olhares.
E penso que nunca mais haverá amanheceres limpos.
O medo faz-me pesar as pálpebras e fecho-as
com muita força porque não posso com elas.
E elas tombam quase até aos pés.
E as lágrimas não têm por onde sair e secam
ou afogam-se na própria raiva de não terem qualquer propósito,
não sei.
Sem lágrimas tenho os olhos baços e secos e redondos e em fogo.
O medo começa num ponto muito frio no centro da barriga
e não termina nunca.
Nem quando se incendeiam os olhos.
Celeste Pereira
2022-03-09

quarta-feira, 2 de março de 2022

Parabéns Ana



Primeiro foi o sonho
que pintei com a cor dos teus olhos
nessa memória que era ainda futuro.
Depois foram dias vagarosos
a olhar esse sonho muito limpo
que se insinuava de mansinho
por trás de cada pensamento,
de cada inquietude, de cada sobressalto.
Por fim foste tu que chegaste
fintando a curva do tempo
e acordando todos os poemas
de palavras azuis.
E eram tantas e tão belas
que eu não conseguia sair do espanto.
Eram torrentes de palavras lindas
que iam ganhando o meio-dia
e acordavam todos os poetas.
E o poema eras sempre tu,
já tão intima dos mistérios do futuro.
E eu, sempre presa a um enorme fascínio,
ia desalinhando as horas em trocos pequeninos
e encostava-me a ti sorvendo-te o hálito de anjo.
Passei a navegar à tona do assombro.
Ainda hoje navego afagando esse sortilégio
de seres tu
um dos meus mais belos poemas.
2022-03-02
Celeste Pereira