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sexta-feira, 29 de junho de 2012

Não


Julguei que a tinha lá ao pé.
Ou então, presa nos lábios
em precária suspensão.
Cuidei que a tocava até,
sem pudor, sem incerteza,
instintiva ali à mão:
a palavra, the word, le mot…
Julguei que estava decidida.
Mas afinal… ainda não…

terça-feira, 26 de junho de 2012

"Uma Mentira Mil Vezes Repetida" de Manuel Jorge Marmelo



- “Já lhe falei da história do homem-zebra?
Quer ouvir? Conto-lha tal como Marcos Sacatepequez a escreveu.”

Assim começa, desta forma prontamente cativante, o último livro de Manuel Jorge Marmelo lançado no início do último mês de Outubro pela Quetzal.
E é assim que os companheiros de autocarro do nosso contador da história vão conhecendo e entrando, com os personagens, nas muitas histórias que por aqui se vão desdobrando.
O criador de algumas destas é Óscar Schidinski, escritor húngaro, judeu, autor do livro “A Cidade Conquistada” com que o nosso narrador se passeia ostensivamente pelos transportes públicos da cidade do Porto.
 Apenas um senão, o livro é falso e o autor uma invenção deste outro, do nosso narrador. Se é verdade que existe o objecto/livro, devidamente montado com um milhar e qualquer coisa de páginas, bem encadernado e vistoso, é também verdade que este não passa de um molho de páginas copiadas de trabalhos diversos de outros autores, organizadas aleatoriamente sem qualquer tipo de continuidade. E o autor, Schidinski, não passa de uma personagem que o nosso narrador vai compondo ao sabor da sua vontade bem como da necessidade de alguma coerência por respeito para com os seus companheiros/ouvintes de viagem.

É o primeiro livro que leio de Manuel Jorge Marmelo e confesso que fiquei absolutamente rendida.
Encontrei um romance que desafia a estrutura do romance tradicional o qual, como sabemos, reclama a existência de uma história como suporte, uma história pré-definida. Em “Uma Mentira Mil Vezes Repetida” o enredo é a construção do próprio romance. Este surge perante os nossos olhos sem qualquer pré-concepção (pelo menos aparente).
No meu ponto de vista deparei-me com um texto auto-reflexivo brilhante. Um texto que ironiza a sua própria condição de texto escrito numa linguagem literariamente muito cuidada, se bem que descomplicada .

Bom, voltemos ao que interessa, o livro. Temos um narrador que, com o intuito de escapar a uma vida de anonimato inventa um livro porque inventá-lo é, para ele, muito melhor do que escrevê-lo. Inventa um escritor e um universo de histórias passadas um pouco por todo o mundo que vai contando aos seus companheiros de jornada. Mais atentos uns, mais alheios outros, em todos julga o nosso narrador deixar a semente do inesquecimento.
Assim vamos partilhando o autocarro com ele e com Marcos Sacatepequez, escritor de Belize cujo corpo, após a sua morte, acaba por ficar insepulto e à deriva por esses mares; com o homem-zebra produto do imaginário literário do personagem anterior; com Albrecht marinheiro amaldiçoado para sempre por se ter cruzado com o cadáver de Marcos; com o carteiro de Granada que troca a correspondência toda; com Yvan Hache pintor expressionista com uma mania incomum; com Afonso Cão; com Cassiano Consciência; com Oscar Schidinski, escritor húngaro, judeu, autor do livro “A Cida…

Enfim, como podemos imaginar um nunca acabar de histórias que se entrelaçam umas nas outras ao sabor da vontade do nosso narrador até que a vontade se consome e a história se solta e se prende a uns olhos rasgados como os de uma mulher persa…
Não menos interessantes e, consequentemente, inultrapassáveis são as reflexões do nosso narrador que fazem a ponte entre a divagação literária e o real; entre o que pode ou não ser invenção e aquilo que nunca o é, as nossas vivências, os nossos anseios, os paradoxos do nosso quotidiano.

Mais um livro a não perder, mais um jovem valor que se confirma no panorama literário nacional.

Também publicada na Revista-Me # 5

domingo, 17 de junho de 2012



Willie G. "aguarela"
Quase

Eu estava quase triste.
o barulho que as palavras causavam
ao embaterem, mudas, em meus lábios
provocavam aquele quase incêndio de silêncio,
aquela quase agonia.

Eu estava quase triste.
Contudo forçava um sorriso quase gordo
que criava aquele quase fogo de solidão,
aquela quase ilusão desfeita em fumo.

Eu estava quase triste.
Quase eu…

sexta-feira, 1 de junho de 2012

Em louvor das crianças



Pintura com cotonete (feita por crianças) 

Se há na terra um reino que nos seja familiar e ao mesmo tempo estranho, fechado nos seus limites e simultaneamente sem fronteiras, esse reino é o da infância. A esse país inocente, donde se é expulso sempre demasiado cedo, apenas se regressa em momentos privilegiados — a tais regressos se chama, às vezes, poesia. Essa espécie de terra mítica é habitada por seres de uma tão grande formosura que os anjos tiveram neles o seu modelo, e foi às crianças, como todos sabem pelos evangelhos, que foi prometido o Paraíso. 
A sedução das crianças provém, antes de mais, da sua proximidade com os animais — a sua relação com o mundo não é a da utilidade, mas a do prazer. Elas não conhecem ainda os dois grandes inimigos da alma, que são, como disse Saint-Exupéry, o dinheiro e a vaidade. Estas frágeis criaturas, as únicas desde a origem destinadas à imortalidade, são também as mais vulneráveis — elas têm o peito aberto às maravilhas do mundo, mas estão sem defesa para a bestialidade humana que, apesar de tanta tecnologia de ponta, não diminui nem se extingue. 
O sofrimento de uma criança é de uma ordem tão monstruosa que, frequentemente, é usado como argumento para a negação da bondade divina. Não, não há salvação para quem faça sofrer uma criança, que isto se grave indelevelmente nos vossos espíritos. O simples facto de consentirmos que milhões e milhões de crianças padeçam fome, e reguem com as suas lágrimas a terra onde terão ainda de lutar um dia pela justiça e pela liberdade, prova bem que não somos filhos de Deus. 

Eugénio de Andrade, in 'Rosto Precário'