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quinta-feira, 24 de março de 2022

Coisas de filhos

Para as comemorações do dia do Pai pediram ao meu filho que completasse a frase "ser pai é..." para colocar num post it num painel que organizariam para o evento.
Aqui vai "a frase" do meu filho da qual muito me orgulho:
Ser pai é…
Passar inúmeras noites a acordar com ele a chorar e apesar de lá chegar para o acalmar, ouvir “mamã”;
É dormir num quinto da cama porque o novo dono da casa resolve dormir na perpendicular, e no resto que resta da noite acordar de repente com um pontapé muito bem aplicado no meio da cara;
É tomar o pequeno almoço rapidamente porque antes de vir para o Externato é crucial ver “a avó de óculos que canta” (para as poucas pessoas que ainda não viram as parecenças, é o Kurt Cobain);
É receber uma chamada a dizer não se preocupe pai, ele está com um corte que ocupa a testa toda porque resolveu descer o escorrega pelo lado errado mas está bem;
É ir atrás dele a correr com uma faca na mão e a rir-se, porque eu desviei os olhos 5s enquanto comia alguma coisa;
É pô-lo no castigo e estar a vê-lo a rir-se durante todo o período, e no fim ouvir “outra vez”;
É passar o jantar todo a ouvir “amanhã patatas” quando comemos arroz, e “amanhã rôs” nos dias que comemos batatas, e jantar rapidamente porque esteve o dia todo sem ouvir a “avó” e portanto antes de deitar tem de ver como é que ela está;
É passar cerca de 1h a fazer Kms no quarto dele para trás e para a frente para ver se adormece, o que se torna um bocado complicado quando é nessa altura que ele decide fazer o resumo do dia, infelizmente com palavras que ainda não constam do meu vocabulário.
Finalmente, é sair do quarto dele com um sorriso de orelha a orelha, a pensar que vendo bem o dia não podia ter corrido melhor, porque pouco antes de adormecer, ele levanta a cabeça e ouço “amanhã papá”, recebo um beijinho e uma festa na cara e
um abraço
.
Pai do Artur Pereira

terça-feira, 15 de março de 2022

Corredor humanitário



Há uma mágoa seca estampada nos rostos de respirações inquietas e olhares vazios;
um desgosto sujo nas mãos que apertam com força os destroços que penduram no corpo desconfiado e tenso;
um silêncio espesso,
ferido,
daqueles que carecem de vida
mas são mais eloquentes do que todas as palavras que possam ser ditas
ou escritas, ou gritadas.
São horas atravessadas numa geografia sem nexo sempre com a madrugada derrotada agarrada aos ossos;
um tempo enorme fechado na angústia das memórias perante um presente estilhaçado;
uma procura inquieta do lugar onde ficaram os pensamentos
que agora parecem ser a essência do impossível
ou apenas o aviso cruel das feridas do futuro,
e do medo,
e da raiva
que nasce da impotência.
Há uma mágoa seca estampada naqueles rostos.
Há um nevoeiro intenso e frio todo estendido por dentro de mim
e não há mais nada.
Celeste Pereira
2022-03-15

quarta-feira, 9 de março de 2022

O medo (versão Março de 2022)



O medo começa num ponto frio no meio da barriga
e cresce em ondas de fogo e gelo
criando buracos profundos
e esquinas vivas onde sento o desespero.
Insinua-se nos mais secretos pensamentos
e enfeita-se de cinzas e roxos
e castanhos muito feios e muito baços
que cobrem escombros
e ensombram os rostos vestidos de renúncia.
O medo torna o ar duro denso e ácido
e fá-lo crescer demais na garganta impedindo-me de gritar
e tornando as respirações dolorosas e crespas,
de gumes moldados na teimosia de não querer acreditar.
E mastigo-o.
Mastigo-o com raiva e desalento,
sem parar e sem mesmo me dar conta que o faço.
E vai crescendo arrastado pelos edifícios em chamas,
pelos hospitais improvisados,
pelas crianças de olhares parados,
pelas ruínas das vidas que leio nesses olhares.
E penso que nunca mais haverá amanheceres limpos.
O medo faz-me pesar as pálpebras e fecho-as
com muita força porque não posso com elas.
E elas tombam quase até aos pés.
E as lágrimas não têm por onde sair e secam
ou afogam-se na própria raiva de não terem qualquer propósito,
não sei.
Sem lágrimas tenho os olhos baços e secos e redondos e em fogo.
O medo começa num ponto muito frio no centro da barriga
e não termina nunca.
Nem quando se incendeiam os olhos.
Celeste Pereira
2022-03-09

quarta-feira, 2 de março de 2022

Parabéns Ana



Primeiro foi o sonho
que pintei com a cor dos teus olhos
nessa memória que era ainda futuro.
Depois foram dias vagarosos
a olhar esse sonho muito limpo
que se insinuava de mansinho
por trás de cada pensamento,
de cada inquietude, de cada sobressalto.
Por fim foste tu que chegaste
fintando a curva do tempo
e acordando todos os poemas
de palavras azuis.
E eram tantas e tão belas
que eu não conseguia sair do espanto.
Eram torrentes de palavras lindas
que iam ganhando o meio-dia
e acordavam todos os poetas.
E o poema eras sempre tu,
já tão intima dos mistérios do futuro.
E eu, sempre presa a um enorme fascínio,
ia desalinhando as horas em trocos pequeninos
e encostava-me a ti sorvendo-te o hálito de anjo.
Passei a navegar à tona do assombro.
Ainda hoje navego afagando esse sortilégio
de seres tu
um dos meus mais belos poemas.
2022-03-02
Celeste Pereira