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quarta-feira, 9 de março de 2022

O medo (versão Março de 2022)



O medo começa num ponto frio no meio da barriga
e cresce em ondas de fogo e gelo
criando buracos profundos
e esquinas vivas onde sento o desespero.
Insinua-se nos mais secretos pensamentos
e enfeita-se de cinzas e roxos
e castanhos muito feios e muito baços
que cobrem escombros
e ensombram os rostos vestidos de renúncia.
O medo torna o ar duro denso e ácido
e fá-lo crescer demais na garganta impedindo-me de gritar
e tornando as respirações dolorosas e crespas,
de gumes moldados na teimosia de não querer acreditar.
E mastigo-o.
Mastigo-o com raiva e desalento,
sem parar e sem mesmo me dar conta que o faço.
E vai crescendo arrastado pelos edifícios em chamas,
pelos hospitais improvisados,
pelas crianças de olhares parados,
pelas ruínas das vidas que leio nesses olhares.
E penso que nunca mais haverá amanheceres limpos.
O medo faz-me pesar as pálpebras e fecho-as
com muita força porque não posso com elas.
E elas tombam quase até aos pés.
E as lágrimas não têm por onde sair e secam
ou afogam-se na própria raiva de não terem qualquer propósito,
não sei.
Sem lágrimas tenho os olhos baços e secos e redondos e em fogo.
O medo começa num ponto muito frio no centro da barriga
e não termina nunca.
Nem quando se incendeiam os olhos.
Celeste Pereira
2022-03-09

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