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quinta-feira, 5 de novembro de 2009

“Caim” de José Saramago


Era enorme a minha curiosidade em relação a este livro por diversas razões.

Em primeiro lugar, logo que ouvi falar, aí por meados de Agosto, que Saramago iria lançar um novo romance cujo nome era “Caim”, previ, tal como com o “Evangelho segundo Jesus Cristo” polémica acrescida para além da que já é mais ou menos habitual em relação aos livros de Saramago. Mais uma vez iria mexer com a instituição Igreja; pelo menos assim dava a entender o título…

Depois, agora por alturas do seu lançamento, não só se confirmaram as minhas previsíveis suspeitas como, o próprio autor, proferiu afirmações conducentes a agravar a contenda já adivinhada.

Logo a seguir se levantaram vozes vindas dos mais diversos quadrantes proferindo, elas próprias, afirmações tanto ou mais contundentes quanto as do autor.

Devo dizer que, no meu ponto de vista, algumas delas, além de evidenciarem um tom de agressividade semelhante ou até superior tinham em seu desfavor, por um lado a falta dos dotes de inteligência que o autor tem, é um facto, por outro a irreflexão de quem reage a algo de forma muito perturbada, com pouca ponderação.

Confesso que li também respostas bem dadas e que tocavam exactamente os pontos fracos das afirmações do autor embora, infelizmente, tenham passado talvez mais despercebidas pela sua serenidade.

Em boa verdade haveria alguém que não esperasse já estas ou outras afirmações semelhantes pronunciadas pelo autor?

Conquanto as considere evitáveis e, talvez até, exageradas no tom, para mim, eram mais do que certas…

Enfim! As afirmações do autor versus reacções da “oposição” cumpriram a sua função: Em dez dias de venda o livro atingiu a quarta edição!!!!

Por tudo isto, logo que acabei de ler “Que cavalos são aqueles que fazem sombra no mar” de António Lobo Antunes e para não estranhar muito a leitura uma vez que os considero a ambos artífices exímios no que concerne a esgrimir as palavras, dei início à sua leitura.

Pois bem. Encontrei um romance pequeno que li em dois dias.

Entendi-o como uma ficção literária, muito bem escrita (como, aliás, já é hábito) que nos agarra desde o início.

Começa com Adão e Eva no Jardim do Eden e as diversas peripécias até à sua expulsão. Vai continuando em toada ligeira, eivada de humor, até à morte de Abel às mãos de Caim.

Este, personagem central, vai-nos conduzindo no seu vaguear pelo mundo, pelos diversos “presentes” com que se vai deparando.

Esses presentes não são mais do que episódios diversos, ligeiramente ficcionados, em que as personagens são as da própria bíblia, alvos de grande análise crítica e, atrever-me-ei mesmo a dizer novamente, de sentido de humor, que nos são narrados no Antigo Testamento.

Todos eles revelam um deus caprichoso, intolerante, déspota e cruel, como qualquer pessoa que leia este documento considerado histórico (é através do Antigo testamento que ainda hoje se interpretam os vestígios arqueológicos da Mesopotâmia e se dá corpo a aspectos da sua História), sem o halo da crença, também o verá.

Os homens cumprem sempre a vontade de uma entidade toda poderosa, sem questionarem razões, por mais absurdas que elas possam ser, apenas para lhe agradarem sendo que o retorno, na maioria das vezes, não existe.

É um livro polémico, sem dúvida. Sobretudo para quem for crente. Mas, quero acreditar que mesmo esses, se forem honestos consigo próprios, serão levados a reflectir sobre algumas questões sem que contudo tenham que macular as suas crenças. Por outro lado, continuo a dizer, se conseguirem despir-se de preconceitos, julgo que não podem deixar de considerar o livro literariamente bom embora de leitura muito simples e apelativa.

A única coisa que realmente não me agradou muito e já tinha acontecido num outro livro do autor, foi o final. Penso que surge como um remate abrupto e fraco tendo em conta todo o conteúdo do livro. Dá a sensação que José Saramago chegou ali e pronto; não lhe apeteceu escrever mais.

Recomendo, obviamente.

12 comentários:

Chatwinesque disse...

Ainda não li, mas há muito tempo que acho que o principal defeito de muitos livros do Saramago é precisamente o final - ele começ geralmente com excelente ideias, desenvolve-as, mas depois o final deixa algo a desejar... Um pouco como se o passo fosse maior que a perna.

José Alexandre Ramos disse...

Concordo. E o facto de se sentir essa precipitação no final do livro para mim não é novo: senti-o também em A Caverna, Ensaio Sobre A Lucidez, As Intermitências da Morte... Os seus melhores livros, para mim, são os de antes do Nobel. Não sei se prémio veio prejudicar o trabalho do escritor ou se o mesmo - coincidindo com a altura em que recebe o prémio - tem vindo a perder algum "fôlego".

Donagata disse...

Chatwinesque, é isso precisamente que eu senti em alguns dos seus livros e que agora repete.

Donagata disse...

José Alexandre Ramos. Curioso como estamos de acordo em vários aspectos. Também não apreciei particularmente os finais dos livros que refere adicionando ainda, que me recorde assim de repente, o próprio "Ensaio sobre a cegueira" do qual gostei bastante mas que me desiludiu particularmente no final.

Também sou de opinião que a sua obra antes do Nobel era, na generalidade, melhor do que após o Nobel.
Já aqui referi, em relação a um livro que li nas férias de há dois anos que se chama, salvo erro "Pequenas memórias" que se esse livro aparecesse na editora com um qualquer outro nome, tenho dúvidas que viesse a ser publicado. Não é um mau livro, não é isso que quero dizer, mas é tão comum, tão corriqueiro que, naturalmente, não entusiasmaria um editor se não levasse a chancela de Saramago.

Unknown disse...

Parabéns pela descrição/resumo do livro, o mesmo acontece com outras obras.
tenho "visitado" o s/ blog, o qual qual aprecio e gosto de ler os textos que escreve em relação às obras que vão sendo publicadas.
quanto a José Saramago confesso que é um escritor que não me cativa a ler (provavelmente vai ser um insulto para muitas pessoas, paciência é a minha opinião), mas não gosto da s/ escrita, como também não gosto dos insultos à religião católica. talvez, eu também não me despegue dos ensinamentos que me encutiram! também não sou uma católica fanática, nada disso....simplesmente não gostei do insulto que ele fez em relação à Biblia, pois é uma obra que merece respeito, para quem a respeita!
resumindo, se para muitas pessoas um livro controverso pode cativa-las a ler, como este "Caim", mas com este escritor em particular, quase que me apetece dizer que nem me apetece desfolhar o livro...

Mar Arável disse...

Creio que o jovem e experiente

Saramago

um dia será recordado

pela obra ainda em curso

que também a mim me deslumbra

quando insatisfeito chego ao final

e ele me anuncia um outro livro

Um Homem eminentemente religioso

político e social - um ser livre

que estimula o pensamento

mesmo os que de si discordam

Donagata disse...

Angelina, em primeiro lugar agradeço as suas visitas e o apreço manifestado pelas minhas resenhas dos livros que vou lendo. Em relação ao facto de gostar ou não da escrita de Saramago, não tem que ser um insulto para ninguém. Estamos ainda num país com liberdade para exprimirmos as nossas opiniões e estas não têm que ser coincidentes...
Já em relação à controvérsia provocada pelo livro e não me estou a referir à provocada pelas afirmações, quiçá desnecessárias do autor, provocam em nós reacções opostas. E, sinceramente, na minha opinião, é lendo que realmente podemos formar um juízo consistente acerca da obra em questão. No meu ponto de vista, perfeitamente anódino em relação à religião quando lido sem preconceitos...

Donagata disse...

Estou de acordo com as suas palavras, Mar Arável. Estou em falta consigo. Não o tenho visitado por falta de tempo para tudo e, confesso, que já sinto saudade...

Anónimo disse...

Vou pedir ao Pai Natal!

ruth ministro disse...

Este também está na minha lista de próximas leituras :)

Beijinhos

Anónimo disse...

O Sr. José Alexandre está sempre a tentar diminuir a obra do grande Saramago, o facto é que o o Sr. só gosta e rasteja, ao que chega a ser vergonhoso, o arrogante e mentiroso Lobo Antunes.
Saramago ainda é o maior escritor português, quer queiram ou não, em todo o mundo todos conhecem Saramago e o leem com satisfação, já o seu autor predilecto é caótico e tem predileções por situações caóticas e escritas barafundadas, boa somente para quem gosta de linhas tortas, tenha paciência!Melhor seria que o sr. convencesse seu patrão a esclarecer as barbaridades que relatou no livro do João do céu!
Alm. João

Rosidelma Fraga disse...

Terminei de ler Caim e estou concluindo um artigo sobre a obra.A essência do real atravessa esse romance de Saramago pela veia da ironia do narrador e explicita a tese do não-poder-saber, ao revelar personagens que agem despudoradamente, sexualmente insaciáveis, como Caim e Lilith, uma personagem criada pelo narrador de Saramago, tendo em vista que no livro de Gênesis apenas consta que Caim partiu para a outra banda do Oriente, casou e teve filhos. Lilith, casada com Noah, e amante de Caim, age tal como Maria de Magdala de "O evangelho segundo Jesus Cristo", no encontro erótico com Jesus, às portas fechadas. O leitor está diante de um enredo de revelações surpreendentes, conforme a focalização do quinto capítulo, a saber:

Caim já entrou, já dormiu na cama de lilith, e, foi a sua própria falta de experiência de sexo que o impediu de se afogar no vórtice de luxúria que num só instante arrebatou a mulher e a fez voar e gritar como possessa. Aplicado, Caim esforçava-se sobre o corpo dela, perplexo por aqueles desgarros de movimentos e vozes, até ao acme dos orgasmos. Não dormiram muito nessa primeira noite os dois amantes. Nem na segunda, nem na terceira, nem em todas as que se seguiram [...] lilith era insaciável... noah, o senhor da cidade e marido de lilith [...]. noah, em todo o tempo, como é costume dizer-se de vida em comum, havia sido incapaz de fazer um filho à mulher, e talvez a esperança de que lilith acabasse por engravidar de um amante ocasional e lhe desse finalmente um filho... que o havia levado a adoptar essa atitude de condescendência conjugal. (SARAMAGO, 2009, p. 61).

Cito este trecho que é um dos surpreendentes da obra, assim como o encontro de Eva e o Querubim e outros trechos. A atual história revela desvela o enigma da criação, no instante em que o narrador relata os acontecimentos, por meio de um ceticismo e realismo sem pregas e, passo a passo, vai desconstruindo o mito do Gênesis. O romance se enquadra nos padrões de Georg Lukács (2003) no que tange ao condicionamento e significado do histórico-filosófico do romance, visto no ângulo de um escritor irônico e objetivo. Recomendo, portanto, a todos leitores, inclusive, aos cristãos como eu porque religião é religião e literatura é literatura. A Bíblia tem também o seu poder lendário e mítico, assim como a literatura. Fé é Fé. Verossimilhança em narrativa não tem nada a ver com religião. Creio que os crentes devem ler Saramago e fim de papo.