Páginas

terça-feira, 28 de setembro de 2010

Lembras-te?


A Carlota e o Calvin há tanto tempo...

Lembras-te Carlota?

Claro que lembras. Como o poderias esquecer!? Daquele dia em que, pela primeira vez vos trouxe um daqueles brinquedos que se penduram em algum lado e exibem, na ponta, algo muito apelativo para vocês brincarem?

Era um passarinho muito colorido, de fartas penas, que saltitava no fundo de um elástico o qual prendi no puxador da porta da cozinha.

E que desconsolada que eu fiquei!

Foi sempre um dos brinquedos preferidos de todos os bebés felinos cá de casa e tu, chegaste-te próximo, cheiraste-o, olhaste-o com algum desprezo (foi o que me pareceu…) e viraste costas com toda aquela pose que te caracterizava já nessa altura.

O teu irmão, porém, mal viu aquele objecto ali ao dependuro, entregou-se afanosamente à árdua tarefa de o resgatar.
E abocanhava, e puxava, e esticava o elástico até não dar mais de si. Até que, não aguentando a força que tinha de fazer (era tão pequenito, ele!) o largava e retomava tudo desde o início.
Tu, esperavas sentada uns bons passos atrás e mirava-lo desdenhosamente, com pena até. Pelo menos era o que me parecia…

De repente levantaste-te, caminhaste decididamente até ao brinquedo, mantiveste-o parado com as unhas de uma patinha e, calma e eficientemente, com os dentes, cortaste o elástico e depositaste o “passarinho” em frente ao teu irmão que assistia atónito e sem coragem de interferir.
Retiraste-te depois, altaneira e indiferente e, tenho quase a certeza que apenas não abanaste a cabeça de incredulidade e algum desdém, creio, por mero pudor e educação.

Lembras-te? Como podias ter esquecido!

O Calvin (o teu irmão), esse, ficou estupefacto, absolutamente desolado e com ar de quem não entendeu coisa nenhuma. É certo que tinha o brinquedo ali mesmo à mão, perdão, patinha de semear mas a verdade é que este não tinha já metade da piada.
Ainda lhe deu uns empurrõezitos, umas cheiradelas, para te fazer o jeito julguei eu, mas rapidamente perdeu o interesse.

Tive pena dele. Tão pequenino que ele era. Lembras-te Carlota? Como ele dependia de ti para tanta coisa!

Querias ensiná-lo porém ele não estava preparado para aprender o que tu já tão bem sabias.

Amarrei as duas pontas do elástico com um nozito e lá refiz o brinquedo quase com a perfeição original embora um pouco mais curto.

E como ficou contente o Calvin!

Não tardaram dois minutos já ele se agarrava de unhas e dentes ao “passarito”, de penas amolecidas de tanta dentada, esticando o elástico até o perder... para de novo o ir buscar.

Mais uma vez chegaste à cozinha, apreciaste a cena durante uns breves minutos até que, com ar complacente mas professoral, voltaste a cortar o elástico com os dentes e depositaste o brinquedo junto do Calvin.

E eu, Carlota, lembras-te? fartei-me de rir e atrasei o jantar indefinidamente nesse dia . E que orgulhosa estava. Como eras esperta!

O Calvin voltou a não achar piada nenhuma, pareceu-me e, mais uma vez se desinteressou.

E a brincadeira repetiu-se várias vezes, que paciência!!!! até que já não tinha mais elástico para dar nó.

Ainda te lembrarias Carlota? Eu não pude nunca esquecer…

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

“O Dia dos Prodígios” de Lídia Jorge


Reparei há pouco tempo que, embora conhecesse já a grande maioria da obra publicada por Lídia Jorge, da qual gosto bastante, não havia ainda lido o seu primeiro livro e aquele que, segundo o que me fui apercebendo, a trampolinou para o patamar dos grandes escritores da língua portuguesa.

Ora como ando em fase de ler as obras dos autores por ordem cronológica de publicação (vá-se lá saber porquê… a mania mais recente, talvez) pareceu-me esta falha um despautério tal que teria de ser imediatamente corrigida pelo que, também este, levei para ler em férias.

O livro é pequeno. A edição que li tem apenas 223 páginas que se descobrem de um sopro.
É lindíssimo e tornou-se para mim evidente a razão pela qual Lídia Jorge foi, de imediato, reconhecida como grande autora.
Os posteriores, bastante diferentes na sua forma, diga-se, vieram apenas confirmar o que este havia deixado bem patente.

A história, algo romanesca, passa-se num povoado algarvio de nome Vilamarinhos. Os seus habitantes, sobretudo velhos e mulheres, viviam enconchados em si próprios, nas suas crenças e no seu imaginário de mitos e fenómenos que eles próprios criavam a partir do acontecimento mais comezinho.
Duas mulheres, quanto a mim, protagonizam a parte mais curiosa da mensagem; a Carminho e a Branca.

De escrita muito incomum, utilizando termos e formas de oralidade local (é essencialmente dialogado) vai-nos, utilizando este povo como metáfora, descrevendo a gente portuguesa do antes do 25 de Abril que aguardava algo, um sinal, um fenómeno que a arrancasse do isolamento, do marasmo, do obscurantismo, da fantasia forçada, do embotamento que a afligia.

Tal como a morte da “cobra alada”, “o dragão”, o riso da mula ou a invasão de formigas, também a revolução foi o sinal de que algo ia mudar.

Mas, no meu ponto de vista, a mensagem que mais me tocou foi precisamente a que essas duas personagens femininas acabaram por me transmitir: o futuro de cada um está nas suas mãos e não à mercê de quaisquer sinais ou fenómenos mais ou menos incomuns que o destino nos coloque na frente.

Mais uma belíssima leitura.

terça-feira, 21 de setembro de 2010

“Fado Alexandrino” de António Lobo Antunes


Este ano passei as minhas curtíssimas férias com dois belíssimos acompanhantes. O marido, sempre a melhor companhia de todas, e o “Fado Alexandrino”.
Companhias distintas, é certo, mas ambas excelentes.

Já acabei de ler o “Fado Alexandrino” (o marido mantém-se...) há uns tempos. Acabei-o ainda em férias e estas já terminaram há algumas semanas. Na verdade, não me tinha apetecido ainda escrever nada sobre ele. É que o impacto da sua leitura é tal que receio que tudo o que possa dizer a seu respeito venha a ser disparatado. Se não por outra razão, por supérfluo.

Mais um livro absolutamente cativante.
E não, não é pela originalidade do seu enredo. Na verdade ALA desenvolve um tema recorrente na maioria dos livros que li dele; as memórias da guerra e a forma como ela acabou por influenciar os percursos de vida de quem por lá passou.

Dito desta forma poderemos ser levados a pensar que, enfim, li mais do mesmo.

Nada disso!
Embora, como já disse, o assunto não seja novo, a verdade é que é explorado sempre de forma diversa.

Neste caso, ao longo das 715 páginas que constituem o livro, vamos acompanhando os desabafos que quatro (cinco? Tenho dúvidas em relação ao capitão, personagem apenas ouvinte)personagens, antigos combatentes em Moçambique de patentes diversas (do soldado ao general), num jantar de batalhão que teve lugar dez anos depois de terminada a guerra colonial, já completamente ébrios de vinho e de mágoa, vão desdobrando.

Bem, na realidade, quem tem que desdobrar e recompor o puzzle que é a escrita deste livro somos nós, os leitores. Confesso que foi dos que me criou maiores dificuldades em relação ao encaixe de todas as peças.

É que, embora esteja escrito numa linguagem de matriz eminentemente objectiva, as constantes interrupções e/ou descontinuidades discursivas entre os diversos narradores tornam-no um rendilhado difícil de compor. As diferentes vozes misturam-se, completam-se, galgando tempos e espaços sem que se desviem daquilo que, no meu ponto de vista, é o objectivo principal; dar-nos uma perspectiva, através do percurso de vida das personagens nesse período de 10 anos, de um Portugal antes, durante e num pós/ próximo do 25 de Abril de 1974.

Tudo decorre no espaço temporal de uma noite e uma manhã. Contudo, nesse espaço de tempo desfilam perante o leitor algumas vidas com as suas voltas, as suas lutas, os seus desencontros, as suas traições… e até, curiosamente, as suas interligações. Todas se tocaram a dado momento sem que de tal se apercebessem.

No decurso de cada uma delas e de todas ALA vai abordando, sempre de forma muito cáustica, muito dura, muito grotesca (provavelmente muito real na sua ficção) instituições militares e políticas, diversos sectores da sociedade, organizações partidárias, a polícia política, as prisões, a guerra…

É uma escrita talvez algo agónica pois, as vidas que se vão desenrolando perante nós, estão irremediavelmente presas à derrota, ao desânimo, ao fracasso, ao medo. Consequência das duras vivências da Guerra Colonial? Dos tempos conturbados e algo confusos do pós 25 de Abril? Do regresso a um status sócio/politico/económico algo semelhante ao anterior variando apenas os que dele se aproveitavam?

A linguagem usada é crua, dura, sem pudores, absolutamente adequada ao que nos quer transmitir. Porém, a narrativa está eivada de metáforas belíssimas, tornando o livro uma peça literária que só alguém com a mestria do autor poderia escrever.

E finalizo com o fim! É que este livro tem, na minha opinião um final inesperado. Para mim, pelo menos foi-o. E que final!

Não será um livro para dar início à leitura do autor. Mas é, seguramente, um fabuloso exemplar da sua obra.

sexta-feira, 10 de setembro de 2010

Arestas


(Imagem: Van Gogh, "Starry Night, drawing")

Que dia é este que não reconheço como tal?
Dia em que as arestas das palavras
Fazem divergir a claridade, envergonhada de mim.
O eco da voz encerra tudo numa baba de breu
que embrulha o dia e o leva,
embaçado também, a desejar ser noite…

quinta-feira, 9 de setembro de 2010

Inextinguível


Por vezes são necessárias tão poucas palavras
para lavrar um sulco tão doloroso na alma!
Nem toda a força de uma vida será capaz de o fechar.