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segunda-feira, 25 de abril de 2022

Sempre Abril

Aguarela de Maria Manuela Silva



Acordo de olhos fechados para os sonhos urgentes.

Há em mim como que uma desordem de cores 

que derrota a madrugada 

e se agarra com força ao interior da pele.

 

Mas hoje não.

Hoje não é dia de derrotas, angústias ou outras renúncias.

Hoje é dia de esbanjar memórias 

e gastar muitas palavras nas lembranças boas.

 

E recordar o espanto, a esperança, 

o mundo de vontades em torvelinho 

que eu vi,

que eu vivi; 

 

lembrar o desejo de geometrias de linhas rectas, 

sem ambiguidades ou hesitações,

que fez esquecer medos, acendeu muitas palavras 

e as cerrou em punhos que elevou bem alto; 

 

festejar com os cravos rubros, vindos não sei de onde, 

que rapidamente se foram espalhando 

até se fixarem nos canos frios das armas em repouso 

no colo de militares de olhar feliz;

 

e ouvir a descoincidência das gaivotas e das grândolas cantadas em coro.

 

Hoje é dia de dar voz ao espanto. 

Dia de esquecer ruínas e desencantos 

e dar força aos sonhos, 

aos tais, 

aos urgentes, 

aos que nos ferram os ossos,

aos que nos constroem,

aos que reordenam as cores 

e mantêm vermelhos os cravos de Abril

aos que nos obrigam a renascer.

 

 

2022-04-25

 

quarta-feira, 6 de abril de 2022

Angústia


Será que ainda me encontro em mim?
Será que no restolho desta raiva,
desta incredulidade que se faz aperto no peito
e me enviesa os pensamentos,
desta como que distância
que se interpõe entre mim e as imagens que me chegam
e nas quais não quero,
não posso, acreditar
irá sobrar algo de mim?
Irá sobrar algo de alguém?
Serei capaz de olhar para a humanidade da mesma forma?
com a mesma fé e acreditar que somos pessoas?
Será que posso matar a desistência?
Julgo que não.
Algo se quebrou em mim
e ficou por aí empilhado nas muitas palavras que gostaria de gritar
e não consigo;
um charco de vergonha que se esconde por trás dos dentes que cerro com muita força.
Julgo que haverá,
quem sabe um dia,
um momento em que o grito há de fugir.
Um momento em que se quebre este casulo apertado em que me refugio,
esta angústia.
Entretanto, inacreditavelmente não resisto à armadilha da curiosidade
(tão doentia)
e assisto do sofá (inimaginável!) ao desmoronar de todos os sonhos,
de todas as crenças que sustentam as pessoas,
de tudo aquilo com que se pensava poder lavrar um futuro.
Será que ainda, algum dia, me lembrarei de toda a
poesia que existe no olhar de uma criança?
Celeste Pereira
2022-04-05

Artur


Como é que eu sei, Artur, que não és um sonho?
Sabes,
é que eu amanheci nesse dia,
no dia em que nasceste,
quase sem saber que amanhecia.
A luz não chegava,
gastava-se toda em hemisférios
que eu não conhecia
e por onde cavalgavam
ecos de surpresa e de medo.
Mesmo assim eu sonhava.
E ia,
devagarinho,
limando todas as arestas da realidade,
calando todas as palavras que não fossem de encantar
e redesenhava-as muito bem com contornos de ternura.
E tu chegaste,
assim,
preso a elas,
que por sua vez
se encontravam muito juntinhas
a embalar-me a alma.
Não te sorvi o cheiro,
e foste tão intocável
como a manhã que não amanhecia.
Mesmo assim,
distante,
talhaste em mim um encanto que ainda hoje não entendo.
Um encanto todo ele da matéria dos sonhos;
um mundo de ternura com pozinhos de magia.
E persiste ainda hoje que já te toco,
que já te cheiro, que já te sinto o colo,
que alinhavo palavras contigo
e as vamos vestindo de espanto e ternura,
como nos sonhos.
Como um sonho...
Como sei, Artur, que não és o meu sonho mais belo?