Páginas

quarta-feira, 26 de dezembro de 2012

Relembro



Relembro todos os Natais.

Os da infância, mais ingénuos e mais frios mas também cheios de tios que vinham de longe, e avós e rabanadas e filhós, e chocolate quente, e grandes mesas cheias de sons alegres e de cheiros coloridos e doces, e de chaminés com sapatinhos, e de bonecas e loucinhas de barro ou alumínio, e de gatos no borralho da lareira, e de pinheiro cortado a cheirar a resina e de brilhos e de sonhos, muitos sonhos! Um nunca acabar de sonhos.

Os que se seguiram, menos cândidos, mais desenganados. Tempos de verdades sem tempo para sonhos, de sermos poucos, de não haver chaminé, sapatinho sim mas sem chaminé. Sem os tios, avós poucos, mais silêncios e já não bonecas nem loucinhas. Ainda os cheiros, ainda alguma cor, ainda o gato sem borralho. Os brilhos mais embaciados como que com vergonha ofuscados pelos da rua.

Mais tarde, mais velha, outros sonhos, outras esperanças, mais casas, mais pessoas, menos avós, menos tios, outros tios, menos pai… mais distância, mais cheiros, mais luzes, mais brilhos, os primos, muitos primos, mais embrulhos, mais presentes e eu talvez mais ausente, sem me querer perder, a sentir a falta das loucinhas, do cheiro a resina, do frio bom, dos gatos no borralho.

Os de hoje, sem qualquer candura, muitos brilhos, e cores, e bolas, e sinos, e presépios e musgo e eu ainda não avó. Tia-avó apenas. A mãe (ainda), eu tia, eu mãe de três, os sobrinhos, não tios… os risos, o barulho, o tinir das louças já não loucinhas, as vozes, os filmes 3D, os cheiros, os sabores, os papéis, os sacos, os gatos no sofá, a lareira. Poucos sonhos, alguns, apenas, e sem fantasia, algumas ausências sentadas a meu lado, as brisas, as sombras, a chuva arrumada nas pálpebras. O desfazer da festa, o desfazer da ilusão, as cinzas que sobram na lareira…os olhos doces de um cão…

Relembro todos os Natais...

domingo, 16 de dezembro de 2012

Lua cheia


"Starry Night" by Vincent Van Gogh

A prata da lua toma de empréstimo a noite
 e acende-me um sorriso manso
que desliza 
e se funde no veludo do teu olhar.
Sentados na areia salgada
onde o murmúrio do mar se faz orquestra,
onde o vento nos segreda odores antigos ,
perdemo-nos um no outro.
Reinventamos a transcendência do amor 

sábado, 15 de dezembro de 2012

Não É Meia Noite Quem Quer” de António Lobo Antunes



Há já tanto tempo que não escrevo uma opinião acerca de um livro que, francamente, nem sei bem por onde começar. Ainda por cima um livro de ALA… Convenhamos que não é a coisa mais simples de fazer.

Confesso que, genericamente, gosto dos livros de ALA. Mais de uns, menos de outros, mas sempre me dão um prazer imenso ler. Pela qualidade da escrita e pelo desafio que, normalmente, comportam.

E, mais uma vez, assim aconteceu. Li-o há já uns tempos e foi daqueles livros que não me apetecia pousar. Não me importava até de o ler de novo, mesmo imediatamente a seguir (o que, regra geral, considero uma parvoíce tendo em conta a imensa multidão de livros bons que nunca terei tempo de ler). Além disso, desde logo cresceu em mim uma grande vontade de falar sobre ele, dizer o quanto me tinha agradado, o quão refrescante é ler um livro que nos preenche.

Pois bem, foi um caso de identificação desde o início. Em primeiro lugar talvez porque, em determinados aspectos, me seja fácil identificar-me com a personagem principal e compreendê-la. Temos idades parecidas e, também eu, em criança, ia passar férias numa casa, junto ao mar, à qual já não tenho acesso. Também eu teria gostado de me ter despedido dela, de relembrar tempos, de ressuscitar memórias…Mas, na verdade, termina aí mesmo o paralelismo das nossas vidas.

O livro, como outros de ALA, decorre num período de tempo muito curto; três dias. A narrativa inicia-se na sexta-feira e termina no domingo.
São apenas três dias na vida de uma mulher mas neles convergem cinquenta e dois anos de lembranças nas quais cabem alegrias, entusiasmos, sonhos, expectativas e desapontamentos.

Naquele rendilhado sublime de tempos e espaços que são, seguramente, marca incontestável do autor e que aqui atinge uma mestria desconcertante, vão desfilando as tardes de Verão passadas na praia com a mãe. As imagens do relacionamento patético dos seus pais. A sua amiga que vive na casa do lado e que, mais tarde, nem a reconhece nem lhe aceita a relembrança. Mas também a perda do seu filho que nunca foi. A sua vida de desesperança. A sua procura de conforto nos braços de duas colegas, que não deseja. A doença. A mutilação. O medo… 
Revive as viagens sentada no quadro da bicicleta do irmão mais velho, o mesmo que salta da falésia como o burro escanzelado que também dela resvalou. O balbuciar desajeitado do seu irmão surdo-mudo. A embriaguez do pai. O remorso da mãe. A loucura do outro irmão resultante das suas experiências em África, na guerra… 
A saudade de ser amada pelo marido. A frustração de ser professora numa escola, por aí. Os segredos que escrevia e que escondia no muro do jardim. A despedida. O fascínio pela falésia com os burros e as cabras de patas finas. Os melros, os muitos melros da casa, E, quem sabe, o fim.

Um livro fabuloso. Um livro a não perder sob pretexto algum.

Mais uma vez um momento alto do escritor António Lobo Antunes. 

terça-feira, 11 de dezembro de 2012

Chamas




Há algo de encantatório nas chamas
que irrompem lascivas envoltas em fumos.
São incêndios de uma quase solidão,
de um quase delírio, de uma quase embriaguez.
Há algo de arrebatador nas suas danças feitas de silêncios,
de respirares lentos, de beijos sem sonhos.
Há algo nas chamas que me arrebata os sonhos
e os transforma preguiçosamente
em silêncios opacos despidos de beijos.
Há algo de encantadoramente perverso nas chamas.