Páginas

domingo, 12 de abril de 2009

A Páscoa da minha memória

Aviso aos leitores: é muito grande, preparem-se ou desistam.

Nasci e vivi durante a minha infância em Chaves. Aí aprendi a brincar sozinha, a correr pelos grandes espaços, a conhecer os animais, desde os domésticos, aos que surgiam pelo monte e me assustavam embora me despertassem a curiosidade.

Aprendi a reconhecer os sons da natureza, do melro, da rola e do pintassilgo a cantar, da rã a coaxar, do gado que se deslocava para o pasto fazendo um ruído compassado enquanto batiam com os cascos nos caminhos de terra batida e rocha e baliam, docemente; do porco que gritava aflitivamente no dia da matança provocando em mim uma angústia indescritível que se iniciava logo que me apercebia dos preparativos…

Aprendi a reconhecer o cheiro da terra lavrada, da terra molhada, da erva cortada, do sangue fresco que as mulheres mexiam em alguidares, das flores silvestres, do feno e do sol…

Aprendi também a ver um céu cheio de estrelas, onde eram perfeitamente distinguíveis as constelações (que o meu avô, era eu muito novinha, me ensinou a reconhecer) e as outras estrelas, as que andavam em terra e tinham uma luz fraquinha, os pirilampos…

Enfim, são memórias que guardo teimosamente neste meu baú de recordações.

Mas hoje, até, pela quadra em que estamos, vou retirar desse baú apenas as lembranças das Páscoas.

Começava logo na véspera pela azáfama, das mulheres, claro, no fabrico do tão famoso (com toda a razão) folar de Chaves. Normalmente, juntavam-se várias pessoas para fazerem vários folares e vinha a nossa casa uma especialista na matéria que os fazia todos. Cada interessado trazia os ovos, o azeite, a farinha, o leite, as carnes (muitas e variadas) e era tudo junto e amassado numa masseira de madeira. A massa tinha que levar umas voltas específicas, uns dizeres tradicionais, umas cruzes estranhas para levedar caso contrário, não ficava com o mesmo aspecto nem paladar.

Entretanto era aceso o forno de lenha o que também não podia ser feito com uma lenha qualquer. Isto era trabalho para uma tarde inteira e passava-se normalmente na chamada “cozinha velha” que era forada casa propriamente dita. Era raro que a minha mãe e a minha avó me deixassem ficar por lá muito tempo. Creio que, pelas gargalhadas que as ouvia soltar, tinham receio de que eu ouvisse algo menos próprio para a minha idade no meio das piadas maliciosas que a mulher do folar tinha o hábito de contar.

Ao mesmo tempo,iam sendo preparadas com o devido tempero as carnes para serem assadas no almoço de Domingo de Páscoa e batidos muitos ovos (que vinham a ser guardados desde há muito tempo em potes cheios com uma solução de cal, julgo eu) com alguma farinha e açúcar para o esperadíssimo e fofíssimo pão-de-ló. Eu, com a pouca idade que tinha, não fazia nada, mas observava com atenção e curiosidade o que ia sendo feito. Por vezes, permitiam-me untar muito bem uma forma que eu tinha, mais pequena mas em tudo igual às outras, colocar-lhe um pouco de massa e fazer o meu próprio pão-de-ló. Que alegria!

Antes de chegar a semana de Páscoa a casa tinha levado uma barrela de cima a baixo onde o chão era esfregado com sabão amarelo, em alguns aposentos encerado, as paredes limpas ou até pintadas, as cortinas lavadas e repostas.

As mesas já ostentavam as toalhas mais brancas e com os bordados mais finos, havia arranjos de flores por todo o lado; tudo resplandecia.

Enfim, dentro de casa não podia fazer nada para não sujar, pelo que ia andando da cozinha “velha” para a “nova”, espreitava aqui, bisbilhotava acolá, enxotavam-me mais além e o tempo que nunca mais passava…

E, finalmente, eis-nos chegados ao Domingo de Páscoa! Que frenesim! Éramos todos à uma a arranjarmo-nos para ir à missa; Eram os vestidos novos, ou pelo menos os mais novos, que saíam do armário muito bem engomados e a cheirar a alfazema; Eram a minha mãe e a minha avó aflitas para deixarem tudo guiado para quando chegassem da missa não atrasar muito o almoço. E então lá íamos todos à missa. A Igreja estava particularmente bonita nesse dia embora o que eu melhor via eram as pernas das pessoas. Era tão pequena!

As Páscoas melhores eram aquelas em que os meus tios iam lá a casa. A minha avó chorava muito antes de eles chegarem, chorava depois quando eles chegavam e voltava a chorar quando eles se despediam. Naquela altura não percebia muito bem. Mas hoje, como eu a entendo!

Contudo, enquanto eles estavam era um constante divertimento.

Éramos uma verdadeira família.

Regressados da missa lá tínhamos o belíssimo repasto à nossa espera. Para mim era tudo mais ou menos normal. A diferença estava nas toalhas, mais bonitas; nos pratos que se iam buscar, aqueles que estavam sempre guardados e na alegria que emanava daquela quantidade de gente a rir e a sentir-se feliz.

Brevemente chegava a hora de arrumar e deixar na sala em cima da mesa, coberta com uma bela toalha bordada, uma laranja e um envelope, juntamente com folar, pão-de-ló, amêndoas e confeitos. Estava na hora em que se aguardava o Compasso, momento fulcral do domingo de Páscoa. Eu não percebia bem porquê mas a verdade é que também o aguardava com ansiedade.

Enquanto era muito novinha não percebia a preocupação dos enfeites das entradas dos portões, ou portas, por onde o compasso deveria entrar. Mais velha um pouco, já eu também entrava naqueles despiques saudáveis, se bem que renhidos, de quem enfeitava com mais primor a sua entrada.

Quando começávamos a ouvir a sineta a badalar apossava-se de mim um nervoso que ainda hoje não entendo até porque, como já disse, era suficientemente nova para não entender o significado daquilo. Penso que era mais ou menos por contágio pois acho que toda a gente se encontrava em movimento a arranjar uma coisa daqui, a endireitar a toalha dacolá, era a flor que estava já meia tombada…

Até que, finalmente, lá chegava o Compasso. Todos os figurantes engalanados nas suas vestes pascais, transportando uma cruz com um Cristo, mito enfeitada, a qual todos devíamos beijar ajoelhando-nos ao mesmo tempo que levávamos um borrifo daquilo que hoje sei ser Água Benta mas que, nem por se benta, lhe achava muita graça.

As pessoas paravam um bom bocado, conversavam, comiam, bebiam um vinhinho fino, daquele que não é para comercializar, e lá seguiam para a próxima casa levando consigo o envelope e toda a magia daqueles dias.

Hoje, continuo a juntar toda a família na minha casa. O ambiente continua a ser de festa e de alegria, não posso dizer que não seja. Mas perdeu-se a magia das coisas que não entendemos e, sobretudo, perderam-se as crenças que nessa época, afinal, ainda nem tinha…

8 comentários:

wallper.lima disse...

A infância é realmente um "mundo encantado", onde nossa cabecinha recebe tanta informação, e mtas não são entendidas, mas o que sei é que jamais serão esquecidas. Quando mais tarde já crescidos, a nossa memória nos acorda a cada dia nos fazendo entender melhor tdo que a gente viveu lá trás.
Amei, suas recordações,sua descrição desde os cantos, dos pássaros, das estrêlas, do pão de ló sendo feito e assado, e sua forminha pequena já separada para fazer o seu pãozinho...e finalmente o dia de páscoa, e toda a magia, que existia naqueles que iriam chegar, os figurantes, que acredito eu encenando a ressurreição de Cristo!
Recordar fatos vividos é reviver momentos inesquecíveis, e que alimentam nossa saudade!
Uma feliz PÁSCOA!
E bjs de chocolate.
Wal.

Cristina Loureiro dos Santos disse...

Uma óptima Páscoa para ti, minha querida Doanagata e para todos aí em casa! Muitos beijinhos de saudades.

Anónimo disse...

Ola Sra Donagata :)
Que relato Fantastico da sua Infancia e das suas Páscoas !...
Por momentos também eu viajei até à minha infancia , em Castelo de Vide ... o cheiro da Terra , os preparativos , Tudo isso !...
Maravilhoso !!!
É sempre Dantesca a sua capacidade de com um simples relato transportar as pessoas " neste caso Eu " aos Locais que relata !...

Obrigado :)

Beijo , Anibal Borges .

Uma Páscoa Feliz para Si e para Todos os Leitores que por aqui passarem !

Sofia Loureiro dos Santos disse...

Donagata, guardiã das memórias e da boa disposição. Boa Páscoa para todos.

BlueVelvet disse...

Então e lá porque o post era grande eu não o lia? Ora essa.
E gostei muito, porque embora alfacinha de gema, a família materna é alentejana e a paterna de perto de Óbidos.
Por isso as Páscoas da minha infância eram passadas lá com muitas similaridades com as tuas.
E também tinha o Compasso que eu adorava.
Hoje, embora com a família mais pequena, mantenho algumas tradições e não perdi as crenças.
Só a magia.
Beijinhos

Donagata disse...

Sorte tua, creio...

orkide@ disse...

Que delícia!...
Fez me voltar aos meus tempos de infância, em que tudo se passava tal qual como relata.
Sinto imensas saudades desse tempo, desses cheiros, desses sabores e principalmente das pessoas....
Fantástico!...

Donagata disse...

Obrigada Orkidea. Ainda bem que gostou e que o que leu provocou em si tão boas recordações.