Ao ser confrontada, no livro que acabei de ler, com referências a terras durienses como Sabrosa, Provesende, Gouvães, Santa Marta de Penaguião, local onde, aliás, nasceu a minha tia mais querida e onde a minha mãe e os restantes irmãos passaram uma boa parte da infância e adolescência, vêm-me à memória muitas histórias que eu cresci a ouvir ora contadas pela minha avó, ora pela minha mãe. Ouvidas vezes sem conta, ilustravam sempre, de forma mais ou menos colorida, mais ou menos rica em pormenores interessantes, o outro lado das vidas no Douro, fora das grandes casas solarengas. Contavam a vida dos assalariados dessas quintas, dos feitores, das mulheres e homens que trabalhavam à jorna, mas também das que serviam nas casas senhoriais, as internas e até as governantas que zelavam para que tudo se mantivesse muito bem quer na presença quer na ausência dos seus senhores.
Contavam as vidas daqueles que, embora assalariados dos grandes proprietários, eram eles próprios donos de terras, de animais, de vinha de “benefício”, onde trabalhavam arduamente, sem o brilho das mansões e dos “senhorios”
Ao recordar estas histórias, não posso deixar de imaginar, agora com outros olhos, o que foi a vida da minha Avó Alice.
A avó Alice nasceu e viveu em Matosinhos com seus pais e irmãos. Aí estudou até à quarta classe (num colégio de meninas?), tendo depois aprendido uma arte; era costureira mas “de alfaiate” assim me dizia com ares de importância. Exercia a sua arte no Porto para onde ia todos os dias. Conheceu o meu avô, um garboso militar das forças da G.N.R. com quem veio a casar tendo algum tempo depois nascido uma menina – a minha mãe.
Até aqui tudo foi normal, uma família normal, um emprego normal, um casamento normal, um marido normal, amigas normais passeios normais, os banhos das sete da manhã, no mar de Matosinhos também normais...
Até que,
em consequência do movimento militar e civil republicano contra a Ditadura militar, (Fevereiro de 1927), o meu avô é exonerado da Guarda Nacional Republicana e, sem outro modo de ganhar a vida, vê-se obrigado a regressar à sua terra, Vilela, onde possuía algumas propriedades que lhes poderiam garantir pelo menos alguns meios de subsistência. É aqui que a avó Alice, para acompanhar o marido, é arrancada a Matosinhos, ao mar (!) aos seus irmãos e pais, ao local onde trabalhava no Porto e, com uma filha acabada de nascer dá um imenso salto para o desconhecido e vê-se sozinha e desapoiada, completamente desterrada em Vilela.Rapidamente percebeu que era um local de pessoas duras (como dura era a sua vida), estranhas, de paisagens agrestes onde apenas o brilho do xisto nas tardes de canícula poderia, por vezes, muito fugazmente, trazer à lembrança um raio de sol a incidir nas ondas do seu mar. Longe do seu mundo, como peixe fora de água, lá foi tendo que se adaptar aquele lugar onde tudo faltava mesmo o mais elementar, onde tudo lhe era estranho e ela era estranha para todos, onde era a única mulher que sabia ler e escrever, que tinha hábitos de higiene pessoal… Chorou muito, dizia ela e, contudo, que coragem! Teve de executar tarefas que não sabia, sofrer durezas e agruras a que não estava habituada, aprender a lidar com a rudeza bem intencionada das pessoas, ser mãe por mais duas vezes…
Também, rapidamente se tornou a ajuda preciosa de todos aqueles, sobretudo de todas aquelas que tinham os seus familiares ausentes e que precisavam de enviar bem como de descodificar as notícias recebidas; era também aquela que sabia costurar as blusinhas melhores, confeccionadas naquela chita que compravam no Pinhão com as parquíssimas economias que tinham sobrado da venda dos queijinhos de cabra ou daqueles dois cabritinhos que já não contavam vender. Blusinhas mimosas, todas com aquelas golas redondinhas e que seriam escrupulosa e cuidadosamente guardadas, em caixas de pinho, para serem orgulhosamente exibidas na romaria mais próxima. Ou então para quando fossem ao Pinhão, a Provesende ou a Vila Real tratar de assuntos de grande importância.
Sem dinheiro e provavelmente sem grande ânimo, houve hábitos que nunca deixou morrer e que, no entanto, ali, eram luxos:
As prendinhas que o Menino Jesus trazia no Natal, ainda que fosse apenas uma mão cheia de confeitos;
O estrear algo novo, no dia um de Janeiro ainda que fossem apenas as meias;
A educação dos seus filhos embora tivessem de percorrer todos os dias seis quilómetros para cada lado para frequentarem a escola em Gouvães.
Que grande lição de vida! Que heroína!
A vida veio a melhorar. O meu avô foi reintegrado nas forças da G.N.R. e foi comandar o Posto em Santa Marta de Penaguião.
A partir daí a vida da avó tomou um rumo normal. Mas terá ela continuado a ser a mesma Alice? Aquela dos alegres banhos de mar às sete horas da manhã com as irmãs e as amigas? Teria ainda sonhos? Esperanças? Projectos?
Contavam as vidas daqueles que, embora assalariados dos grandes proprietários, eram eles próprios donos de terras, de animais, de vinha de “benefício”, onde trabalhavam arduamente, sem o brilho das mansões e dos “senhorios”
Ao recordar estas histórias, não posso deixar de imaginar, agora com outros olhos, o que foi a vida da minha Avó Alice.
A avó Alice nasceu e viveu em Matosinhos com seus pais e irmãos. Aí estudou até à quarta classe (num colégio de meninas?), tendo depois aprendido uma arte; era costureira mas “de alfaiate” assim me dizia com ares de importância. Exercia a sua arte no Porto para onde ia todos os dias. Conheceu o meu avô, um garboso militar das forças da G.N.R. com quem veio a casar tendo algum tempo depois nascido uma menina – a minha mãe.
Até aqui tudo foi normal, uma família normal, um emprego normal, um casamento normal, um marido normal, amigas normais passeios normais, os banhos das sete da manhã, no mar de Matosinhos também normais...
Até que,
em consequência do movimento militar e civil republicano contra a Ditadura militar, (Fevereiro de 1927), o meu avô é exonerado da Guarda Nacional Republicana e, sem outro modo de ganhar a vida, vê-se obrigado a regressar à sua terra, Vilela, onde possuía algumas propriedades que lhes poderiam garantir pelo menos alguns meios de subsistência. É aqui que a avó Alice, para acompanhar o marido, é arrancada a Matosinhos, ao mar (!) aos seus irmãos e pais, ao local onde trabalhava no Porto e, com uma filha acabada de nascer dá um imenso salto para o desconhecido e vê-se sozinha e desapoiada, completamente desterrada em Vilela.Rapidamente percebeu que era um local de pessoas duras (como dura era a sua vida), estranhas, de paisagens agrestes onde apenas o brilho do xisto nas tardes de canícula poderia, por vezes, muito fugazmente, trazer à lembrança um raio de sol a incidir nas ondas do seu mar. Longe do seu mundo, como peixe fora de água, lá foi tendo que se adaptar aquele lugar onde tudo faltava mesmo o mais elementar, onde tudo lhe era estranho e ela era estranha para todos, onde era a única mulher que sabia ler e escrever, que tinha hábitos de higiene pessoal… Chorou muito, dizia ela e, contudo, que coragem! Teve de executar tarefas que não sabia, sofrer durezas e agruras a que não estava habituada, aprender a lidar com a rudeza bem intencionada das pessoas, ser mãe por mais duas vezes…
Também, rapidamente se tornou a ajuda preciosa de todos aqueles, sobretudo de todas aquelas que tinham os seus familiares ausentes e que precisavam de enviar bem como de descodificar as notícias recebidas; era também aquela que sabia costurar as blusinhas melhores, confeccionadas naquela chita que compravam no Pinhão com as parquíssimas economias que tinham sobrado da venda dos queijinhos de cabra ou daqueles dois cabritinhos que já não contavam vender. Blusinhas mimosas, todas com aquelas golas redondinhas e que seriam escrupulosa e cuidadosamente guardadas, em caixas de pinho, para serem orgulhosamente exibidas na romaria mais próxima. Ou então para quando fossem ao Pinhão, a Provesende ou a Vila Real tratar de assuntos de grande importância.
Sem dinheiro e provavelmente sem grande ânimo, houve hábitos que nunca deixou morrer e que, no entanto, ali, eram luxos:
As prendinhas que o Menino Jesus trazia no Natal, ainda que fosse apenas uma mão cheia de confeitos;
O estrear algo novo, no dia um de Janeiro ainda que fossem apenas as meias;
A educação dos seus filhos embora tivessem de percorrer todos os dias seis quilómetros para cada lado para frequentarem a escola em Gouvães.
Que grande lição de vida! Que heroína!
A vida veio a melhorar. O meu avô foi reintegrado nas forças da G.N.R. e foi comandar o Posto em Santa Marta de Penaguião.
A partir daí a vida da avó tomou um rumo normal. Mas terá ela continuado a ser a mesma Alice? Aquela dos alegres banhos de mar às sete horas da manhã com as irmãs e as amigas? Teria ainda sonhos? Esperanças? Projectos?
3 comentários:
Dona Gata - histórias de mulheres que, silenciosas, conseguiram que outras mulheres se fossem emamcipando. E contadas por uma Mulher.
Adorei ler a história da avó Alice! Acho que nunca soube tanto.
Obrigada. Já sabes como sou. Emocionei-me ao lembrar-me da avó, sempre tão silenciosa e tão boa. Com certeza que soube manter os sonhos, não achas?
Obrigada, mais uma vez.
Beijinhos :)
Cristina Loureiro dos Santos
Tenho a certeza que os manteve. É claro que se eu fosse um pouco mais velha quando ouvia estas histórias, portanto mais atenta aos pormenores e às entrelinhas, saber-te-ia dizer melhor do seu sentir. Assim, só posso imaginar.Os pormenores que a minha mãe acrescenta não ajudam muito esse aspecto dado que os centra, sobretudo, em si própria. É possível que o filho mais novo, que nasceu em Vilela, possa ter melhores recordações...
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