Imagem: "Munch cat" de Susan Herbert (paródia sobre o quadro "O grito" de Munch)
Cá vou eu, calma e relaxada, quase ronronando de prazer, no avião que me transportará ao destino escolhido para as férias tão desejadas e, diga-se, merecidas.
Mais para dar um esticãozinho às pernas do que por outra razão, decido levantar-me e empreender o longo percurso até à cauda da aeronave onde se encontram os sanitários.
Pelo caminho vou ouvindo a voz da hospedeira que, daquela forma quase totalmente incompreensível mas que penso ser de utilização obrigatória, anunciava a passagem dos produtos de free-shop. Ao mesmo tempo apercebi-me que já se encontrava um senhor aguardando a utilização do W.C.
Encostei-me o mais que pude dada a conhecida exiguidade dos espaços em questão quando, de repente, a porta do sanitário se abre de rompante e, do seu interior, desinveste rápida e atabalhoadamente um personagem, de ar bastante assustado que me pergunta ansiosamente o que é que a hospedeira havia dito. Embora estranhando seriamente quer a atitude quer a pergunta lá lhe fui dizendo que não tinha prestado grande atenção mas julgava ser o anúncio do início da venda dos produtos de free-shop. O outro senhor, entretanto, tinha entrado na sua vez pelo que nos mantivemos apenas os dois naquele pequeno espaço. Eu aguardava e, a criatura em questão, agora com um ar um pouco mais aliviado, explicou-me que tinha apanhado um grande susto pois como se encontrava a fumar no sanitário, o que sabia ser absolutamente proibido, julgou ter feito disparar algum alarme e que a voz que tinha ouvido lhe estaria a fazer algum tipo de intimação.
Claro está que, já com ar de poucos amigos, lhe respondi que, na minha opinião tinha feito um rematado disparate uma vez que fora bem avisado que se encontrava num voo de não fumadores (como creio serem todos agora, aliás), incluindo as casas de banho e que o não cumprimento deste preceito o sujeitava às sanções previstas pela lei do país para que viajávamos. Isto para não falar na total falta de respeito que manifestava pelos restantes passageiros utentes do W.C. que teriam de suportar o fumo intoxicante dado o reduzidíssimo espaço em questão.
A personagem olhou-me, agora com um ar de verdadeira estranheza e respondeu-me que não tinha jeito nenhum não se poder fumar, que era uma viagem longuíssima (2h e 10m) e que, pasme-se, iria voltar a entrar para acabar o que havia interrompido.
Sem resposta a dar-lhe e, sobretudo, sem qualquer vontade de prolongar tão absurdo diálogo, aproveitei o facto de o outro senhor estar a sair e entrei para a pequena cabina. Lá satisfiz as minhas necessidades (como já disse nada prementes) e quando me preparava para recompor as vestes e refrescar um pouco o rosto, eis que investem fortemente contra a porta, com berros de
“Abre!, Abre la puerta!”
Mais intrigada do que alarmada, consigo ainda com relativa calma responder “Está ocupada. Só um momento por favor!”.
Descarrego o autoclismo e é então que os encontrões à porta redobram de intensidade. Conseguem que a porta se abra (não sei bem como pois tinha corrido o fecho que a travava) no momento exacto em que eu, completamente atordoada, ofendida, irritada e sem perceber rigorosamente nada do que se estava a passar, lá consigo puxar o fecho das calças ficando com um ar minimamente composto e (julgo eu), digno. É claro que lavar mãos ou o que quer que fosse, nem pensar.
Porta escancarada deparo-me com três rostos de três zangadíssimas hospedeiras que vociferavam para cima de mim frases como “Usted estaba humando!” “Usted sabe que es prohibido!” “Usted está cometiendo un crimen e à llegada le entregaremos a la autoridad!”
Passado o primeiro momento de estupefacção e, confesso, de grande susto, apenas respondi, com ar muito calmo, “Não fui eu. Eu nem sequer fumo.”
Novamente os três rostos das três hospedeiras, ainda mais zangados, se dirigiram a mim invectivando-me com frases que já nem recordo inteiramente mas que não abonavam nada em relação à minha pessoa. Recordo-me de uma me ter dito que o sanitário cheirava a tabaco ao que eu respondi que efectivamente tinha constatado esse facto logo que entrei e que, francamente, me tinha incomodado até bastante. Outra, apontou-me um dedo bem junto do meu nariz e disse “Ay humado si, lo ay visto. Lo ay visto!”
Aí meus amigos, tendo em conta que não estou nem um pouco habituada a que, por um lado me apontem dedos em frente do meu nariz que gosto de manter bem empinado, por outro a que ponham minimamente em causa a minha palavra, apenas perguntei, com toda a calma que consegui reunir, o que é que exactamente a senhora tinha visto dado que nada havia para ver a não ser, talvez, as minhas partes pudibundas no caso de não ter sido suficientemente despachada a recompor o vestuário.
A senhora aparentou um ar ofendido mas, não tendo conseguido especificar o que viu, disse apenas “ay sido usted, ay sido usted”.
Foi aí que, de repente, a sôdonagata resolve virar as orelhas para trás, colocar as unhas em riste, soltar chispas paralisantes (pelo menos em intenção) dos olhos semicerrados à boa maneira dos meus companheiros felinos e, num sussurro quase sibilante, dizer apenas:
- "Os vossos nomes, por favor!...
Tinha ultrapassado a capacidade de aguentar o desrespeito, as atitudes intimidatórias além de ofensivas, a falta de bom senso e a inépcia de quem, apesar de tudo, tem outras obrigações.
Então, aparentemente surpreendida (?), uma delas, por sinal a de aspecto menos antipático e que até aí tinha sido um pouco mais comedida, deu indícios de alguma racionalidade, ou bom senso, ou fosse lá o que fosse (as outras calaram-se) e meio a perguntar meio a afirmar, disse-me:
- Não foi a senhora pois não? Foi alguém antes de si!
Surpreendida com tamanha sagacidade especialmente se associada às espantosas capacidades olfactivas destas meninas (sim, porque de meninas se tratava), surgidas não sei bem de onde, após terem sido "intimadas" a identificarem-se, e já sem vontade ou disposição para tão estúpido diálogo, ainda respondi com a paciência que consegui reunir:
- Penso que é algo absolutamente óbvio desde o início, desde que utilizassem um pouco da vossa perspicácia!
É preciso dizer que a criatura, o culpado, se encontrava postado ao meu lado, à minha frente, ou atrás de mim, conforme eu me ia movimentando, exalando, todo ele, um intensíssimo odor a tabaco, tremendamente encarnado não sei se de susto se de vergonha pela sua evidente covardia.
Estranhamente (pelo menos para mim), uma das senhoras ainda se virou para mim e disse, espante-se “Então diga-nos quem foi.”… Como se a minha função ali fosse saber quem fumava nos sanitários!!!
Pois é, aqui a sôdonagata deve ter ar de Miss. Marple, de Hercule Poirot, Sherlok Holmes, Nero Wolf e o seu fiel Archie Goodwin ou, mais provavelmente, de estúpida!...
Claro está que simplesmente lhes respondi que se não tinham algo de verdadeiramente relevante a perguntar ou a dizer e se não me iam prender já, mesmo que a intenção fosse de me entregar às autoridades à chegada, eu iria regressar ao meu lugar para prosseguir a viajem com o conforto que o seu preço me deveria estar a proporcionar. Mas, antes disso, iria tomar nota dos respectivos nomes.
O prevaricador, o covarde fumador, lá se mantinha, ombro com ombro com os intervenientes, dada a já referida exiguidade dos espaços em questão, calado, corado, com ar de querer desaparecer dali mas incapaz de ser homem.
Fitei-o longamente com o olhar mais desdenhoso que consegui, procurando nele reflectir todo o desprezo que me inspirava semelhante criatura. Triste personagem; não sei se algum dia será capaz de ter algum respeito por si próprio. Provavelmente nem saberá o que isso é.
Regressei ao meu lugar, sentei-me e prossegui a viagem disposta a lentamente, confesso, regressar à minha calma habitual, encolher as unhas, espetar as orelhas, arquear preguiçosamente o dorso e ronronar de antecipação pelos prazeres que as férias me iriam proporcionar.
Ah! É verdade, não fui presa à chegada!
Lanzarote em 18/09/2007
Cá vou eu, calma e relaxada, quase ronronando de prazer, no avião que me transportará ao destino escolhido para as férias tão desejadas e, diga-se, merecidas.
Mais para dar um esticãozinho às pernas do que por outra razão, decido levantar-me e empreender o longo percurso até à cauda da aeronave onde se encontram os sanitários.
Pelo caminho vou ouvindo a voz da hospedeira que, daquela forma quase totalmente incompreensível mas que penso ser de utilização obrigatória, anunciava a passagem dos produtos de free-shop. Ao mesmo tempo apercebi-me que já se encontrava um senhor aguardando a utilização do W.C.
Encostei-me o mais que pude dada a conhecida exiguidade dos espaços em questão quando, de repente, a porta do sanitário se abre de rompante e, do seu interior, desinveste rápida e atabalhoadamente um personagem, de ar bastante assustado que me pergunta ansiosamente o que é que a hospedeira havia dito. Embora estranhando seriamente quer a atitude quer a pergunta lá lhe fui dizendo que não tinha prestado grande atenção mas julgava ser o anúncio do início da venda dos produtos de free-shop. O outro senhor, entretanto, tinha entrado na sua vez pelo que nos mantivemos apenas os dois naquele pequeno espaço. Eu aguardava e, a criatura em questão, agora com um ar um pouco mais aliviado, explicou-me que tinha apanhado um grande susto pois como se encontrava a fumar no sanitário, o que sabia ser absolutamente proibido, julgou ter feito disparar algum alarme e que a voz que tinha ouvido lhe estaria a fazer algum tipo de intimação.
Claro está que, já com ar de poucos amigos, lhe respondi que, na minha opinião tinha feito um rematado disparate uma vez que fora bem avisado que se encontrava num voo de não fumadores (como creio serem todos agora, aliás), incluindo as casas de banho e que o não cumprimento deste preceito o sujeitava às sanções previstas pela lei do país para que viajávamos. Isto para não falar na total falta de respeito que manifestava pelos restantes passageiros utentes do W.C. que teriam de suportar o fumo intoxicante dado o reduzidíssimo espaço em questão.
A personagem olhou-me, agora com um ar de verdadeira estranheza e respondeu-me que não tinha jeito nenhum não se poder fumar, que era uma viagem longuíssima (2h e 10m) e que, pasme-se, iria voltar a entrar para acabar o que havia interrompido.
Sem resposta a dar-lhe e, sobretudo, sem qualquer vontade de prolongar tão absurdo diálogo, aproveitei o facto de o outro senhor estar a sair e entrei para a pequena cabina. Lá satisfiz as minhas necessidades (como já disse nada prementes) e quando me preparava para recompor as vestes e refrescar um pouco o rosto, eis que investem fortemente contra a porta, com berros de
“Abre!, Abre la puerta!”
Mais intrigada do que alarmada, consigo ainda com relativa calma responder “Está ocupada. Só um momento por favor!”.
Descarrego o autoclismo e é então que os encontrões à porta redobram de intensidade. Conseguem que a porta se abra (não sei bem como pois tinha corrido o fecho que a travava) no momento exacto em que eu, completamente atordoada, ofendida, irritada e sem perceber rigorosamente nada do que se estava a passar, lá consigo puxar o fecho das calças ficando com um ar minimamente composto e (julgo eu), digno. É claro que lavar mãos ou o que quer que fosse, nem pensar.
Porta escancarada deparo-me com três rostos de três zangadíssimas hospedeiras que vociferavam para cima de mim frases como “Usted estaba humando!” “Usted sabe que es prohibido!” “Usted está cometiendo un crimen e à llegada le entregaremos a la autoridad!”
Passado o primeiro momento de estupefacção e, confesso, de grande susto, apenas respondi, com ar muito calmo, “Não fui eu. Eu nem sequer fumo.”
Novamente os três rostos das três hospedeiras, ainda mais zangados, se dirigiram a mim invectivando-me com frases que já nem recordo inteiramente mas que não abonavam nada em relação à minha pessoa. Recordo-me de uma me ter dito que o sanitário cheirava a tabaco ao que eu respondi que efectivamente tinha constatado esse facto logo que entrei e que, francamente, me tinha incomodado até bastante. Outra, apontou-me um dedo bem junto do meu nariz e disse “Ay humado si, lo ay visto. Lo ay visto!”
Aí meus amigos, tendo em conta que não estou nem um pouco habituada a que, por um lado me apontem dedos em frente do meu nariz que gosto de manter bem empinado, por outro a que ponham minimamente em causa a minha palavra, apenas perguntei, com toda a calma que consegui reunir, o que é que exactamente a senhora tinha visto dado que nada havia para ver a não ser, talvez, as minhas partes pudibundas no caso de não ter sido suficientemente despachada a recompor o vestuário.
A senhora aparentou um ar ofendido mas, não tendo conseguido especificar o que viu, disse apenas “ay sido usted, ay sido usted”.
Foi aí que, de repente, a sôdonagata resolve virar as orelhas para trás, colocar as unhas em riste, soltar chispas paralisantes (pelo menos em intenção) dos olhos semicerrados à boa maneira dos meus companheiros felinos e, num sussurro quase sibilante, dizer apenas:
- "Os vossos nomes, por favor!...
Tinha ultrapassado a capacidade de aguentar o desrespeito, as atitudes intimidatórias além de ofensivas, a falta de bom senso e a inépcia de quem, apesar de tudo, tem outras obrigações.
Então, aparentemente surpreendida (?), uma delas, por sinal a de aspecto menos antipático e que até aí tinha sido um pouco mais comedida, deu indícios de alguma racionalidade, ou bom senso, ou fosse lá o que fosse (as outras calaram-se) e meio a perguntar meio a afirmar, disse-me:
- Não foi a senhora pois não? Foi alguém antes de si!
Surpreendida com tamanha sagacidade especialmente se associada às espantosas capacidades olfactivas destas meninas (sim, porque de meninas se tratava), surgidas não sei bem de onde, após terem sido "intimadas" a identificarem-se, e já sem vontade ou disposição para tão estúpido diálogo, ainda respondi com a paciência que consegui reunir:
- Penso que é algo absolutamente óbvio desde o início, desde que utilizassem um pouco da vossa perspicácia!
É preciso dizer que a criatura, o culpado, se encontrava postado ao meu lado, à minha frente, ou atrás de mim, conforme eu me ia movimentando, exalando, todo ele, um intensíssimo odor a tabaco, tremendamente encarnado não sei se de susto se de vergonha pela sua evidente covardia.
Estranhamente (pelo menos para mim), uma das senhoras ainda se virou para mim e disse, espante-se “Então diga-nos quem foi.”… Como se a minha função ali fosse saber quem fumava nos sanitários!!!
Pois é, aqui a sôdonagata deve ter ar de Miss. Marple, de Hercule Poirot, Sherlok Holmes, Nero Wolf e o seu fiel Archie Goodwin ou, mais provavelmente, de estúpida!...
Claro está que simplesmente lhes respondi que se não tinham algo de verdadeiramente relevante a perguntar ou a dizer e se não me iam prender já, mesmo que a intenção fosse de me entregar às autoridades à chegada, eu iria regressar ao meu lugar para prosseguir a viajem com o conforto que o seu preço me deveria estar a proporcionar. Mas, antes disso, iria tomar nota dos respectivos nomes.
O prevaricador, o covarde fumador, lá se mantinha, ombro com ombro com os intervenientes, dada a já referida exiguidade dos espaços em questão, calado, corado, com ar de querer desaparecer dali mas incapaz de ser homem.
Fitei-o longamente com o olhar mais desdenhoso que consegui, procurando nele reflectir todo o desprezo que me inspirava semelhante criatura. Triste personagem; não sei se algum dia será capaz de ter algum respeito por si próprio. Provavelmente nem saberá o que isso é.
Regressei ao meu lugar, sentei-me e prossegui a viagem disposta a lentamente, confesso, regressar à minha calma habitual, encolher as unhas, espetar as orelhas, arquear preguiçosamente o dorso e ronronar de antecipação pelos prazeres que as férias me iriam proporcionar.
Ah! É verdade, não fui presa à chegada!
Lanzarote em 18/09/2007
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