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sexta-feira, 26 de março de 2010

Tu e o meu bolo de chocolate (a alternativa que não li)


(Imagem "Exhibicion" de Louis Wain)


Margarida estava num alvoroço assombroso. Andava pela casa toda, compondo daqui, virando d’acolá, num frenesim quem nem mesmo ela, se lho perguntassem, justificaria.
A verdade é que o caso não era para menos; os seus dois irmãos, estudantes em Coimbra, chegavam hoje a casa para um merecido, se bem que curto período de férias.
Se isso, por si só era já uma animação inusitada naquela casa, com eles vinha também Leonardo colega e amigo de ambos. Margarida apenas tinha tido oportunidade de o ver uma vez. Mas a verdade é que a mera lembrança daqueles olhos escuros e profundos que pareciam escrutiná-la embora com laivos de cumplicidade, era o suficiente para a levar ao ponto de exaltação em que se encontrava.

A verdade também é que eram escassas as oportunidades que Margarida tinha para conviver vivendo assim, como vivia, naquela belíssima quinta, apenas com a sua mãe, os seus preciosos livros, os cães e o Faruk, o seu gato. Este era um bicho muito especial que lhe havia sido oferecido pela madrinha, senhora da sociedade do Porto que, de forma muito expedita o havia pedido directamente, por carta, ao Xá da Pérsia, Reza Pahlavi. E que este, numa atitude que apenas os soberanos sabem ter, lhe havia enviado como oferta.

Tinha um pelo longo e sedoso de tom marfim com todas as extremidades de um cinza azulado. Os olhos, de um azul intenso, sobressaiam no seu focinho redondo denunciando uma expressividade pouco comum nos animais. Parecia sondar as pessoas.
Era absolutamente dedicado a Margarida, estabelecendo com ela longos e barulhentos, diga-se, “diálogos”.
Eram os desabafos, as confidências, as dúvidas que Margarida não se atrevia a ter com ninguém e que, a criatura, de algum modo parecia entender e apaziguar.

Bom, mas voltemos à exaltação inusitada de Margarida.

Estava previsto que os rapazes chegassem pela hora do chá e, D. Leonor, havia dito a Margarida que tratasse de o aprontar convenientemente. Fazia, esta tarefa, parte do treino de preparação para ser uma Senhora; para gerir uma casa, naturalmente na sombra de um marido de posição…

Assim havia sido com D. Leonor, com sua mãe, D. Gomersinda e haveria de o ser também com Margarida.

Margarida passou a tarde dando ordens na cozinha, arranjando as flores que havia colhido, engomando ela própria a toalha de linho bordada pela avó (aquela dos miosótis azuis que tão bem ligava com o serviço de chá que tencionava utilizar, Sèvres branco) … Enfim, num infinito vaivém.

Inquieta, foi para a cozinha para, ela mesma, confeccionar o famoso bolo de chocolate receita da avó Gomersinda que, por sua vez, a tinha recebido da sua grande amiga D. Palmira do Condado de Vila Pouca. Não é que fosse difícil, mas tinha os seus truques e, Margarida, queria tudo absolutamente perfeito.

E, finalmente, tudo pronto.
A mesa estava linda! As flores azuis, fresquíssimas, artisticamente arranjadas, competiam em beleza com o espantoso bolo de chocolate que sobressaía de entre o branco das chávenas e o pintalgado azul da toalha.

Tudo pronto. E ainda bem, pois nesse exacto momento ouviu-se a algazarra dos cães que saudavam os recém-chegados. Antero e Eduardo entraram e correram para ela que, um pouco embaraçada, se viu às voltas pendurada nos braços de ambos.
Como tinha saudades destas brincadeiras!
Leonardo, um pouco mais atrás, cumprimentou-a mais cerimoniosamente.
Ao grupo juntou-se a mãe e, Margarida, um pouco impaciente foi-os conduzindo para a saleta onde se encontrava servido o chá preparado com tantos enlevos.

Abriu a porta e, de repente, exclama por entre o burburinho bem-disposto da conversa:
- Tu!!! E o meu bolo de chocolate!!!
Ao mesmo tempo empalidece e sofre uma ligeira tontura. É prontamente amparada por Leonardo o único que se apercebeu da sua aflição porque os restantes soltavam gargalhadas incontroláveis perante o que viam.

Na sala, em cima da mesa, Faruk ora mastigava, ora lambia o bolo que Margarida passara uma boa parte da tarde a fazer com requintes de cozinheira apurada.

2 comentários:

pin gente disse...

quem a mandou fazer confidências a faruk?!

gostei muito desta alternativa (aqui lida)

um abraço
luísa

Donagata disse...

Faz parte de um todo com muito mais sentido....