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sábado, 16 de janeiro de 2010

Uma vida em poucas horas


Cheguei a esta casa faz hoje, dia 24 (estamos em 24 de Dezembro de 2009), precisamente dezasseis anos.

Entrei um tanto à socapa e, apesar de compreender a situação não deixei, porém, de me aborrecer um tanto com o facto de me manterem, nessa noite, afastado de tudo e de todos. É que não era nada aquilo a que estava habituado.
Havia percebido perfeitamente que estava destinado a surpreender uma pessoa, aquela que viria a ser a minha grande amiga e que vocês todos conhecem pelo nome de Donagata.
E, em abono da verdade, é certamente uma gata. Eu o digo. Eu que sou um gato a sério.

O meu nome é Zorba. Tenho nome grego embora seja de origem norueguesa (apesar de nascido aqui mesmo, em Portugal). A minha mãe e o meu pai é que eram ambos noruegueses e residiam neste país de clima ameno. Pelo menos às vezes.

Vamos lá que não me quero perder muito o que se torna já um tanto difícil.

Hoje, estou aqui, no meu quarto com a minha amiga. Enquanto ela vai batendo com os dedos naquelas coisas escuras que tem na sua frente fazendo aparecer uns arabescos (e eu percebo perfeitamente que está a escrever pois sou gato mas não sou parvo). Observo-a pelo cantinho do meu olho. Está preocupada. Percebo-lhe perfeitamente um ar triste que lhe contrai o rosto e que não lhe é nada habitual.

Eu sei bem porque é. Está inquieta por minha causa.
Já percebi há muito que estou doente. As dores são muitas embora as tente disfarçar. E a minha amiga, aquela que eu adoptei, percebe-as e tenta por todos os meios atenuá-las, torná-las suportáveis.
Administra-me cuidadosamente medicamentos, afaga-me constantemente, limpa-me, conversa imenso comigo para que eu consiga estar bem.
A verdade é que os resultados nem sempre são os desejados mas eu tento dissimular o melhor que posso para atenuar a sua preocupação. Contudo, nem sempre sou capaz. E é nessas alturas que, ao erguer o meu olhar para o seu, sinto que ela sabe que sofro e sofre também.

Temos passado muito tempo juntos nestes últimos dias. Ela a ler ou a escrever e eu a recordar a minha vida.

Como já referi, cheguei aqui a casa há 16 anos e destinava-me a emergir do seu sapatinho na manhã do dia de Natal.
Cá em casa ainda é assim. Mantém-se a tradição de deixar os sapatinhos junto do pinheiro na noite de consoada e, na manhã do dia seguinte, é quem mais corre para abrir os seus presentes, enquanto se vai tomando o pequeno almoço de café e rabanadas (os que gostam, claro).

Nesse ano eu fui a surpresa no seu sapato.
E como ficou incrédula!!! Custou-lhe a entender que era eu, um gato, um Bosques da Noruega, o seu presente.
Mas logo que caiu em si era ver a alegria estampada no seu rosto. E eu, bem, eu só pude retribuir com fortes ron-rons e muitas turrinhas.
O dia foi muito trabalhoso, como todos os dias de Natal na nossa casa, mas a verdade é que não deixou de tirar uns bocadinhos, roubados aos muitos afazeres, para me acariciar, para me fazer sentir bem.


Na verdade todos o fizeram. Senti-me um pequeno reizinho e, é também certo que tentei corresponder distribuindo charme a torto e a direito por todos quantos ali passaram o dia.
Sem falsas modéstias, a que verdadeiramente não sou muito dado, fui um estrondoso sucesso!
Sou afável, bem parecido, actuo sempre com bastante delicadeza e sou fleumático por natureza. Poucas coisas me irritam verdadeiramente. Embora, quando tal acontece, e é necessário muito, o melhor é sair de baixo pois sou tremendamente eficaz nas minhas reacções.

O cão vadio que um dia se atreveu a entrar nos nossos aposentos com intenções duvidosas, pode perfeitamente confirmá-lo. Era vê-lo a correr na minha frente pelo jardim fora depois de umas unhadas nada simpáticas, confesso.

A Donagata continua absorta a escrever… Nem se apercebe que estou a observá-la.
Ou será que sim?
Por vezes estica a mão e acaricia-me as orelhas e diz:
- Então Nó-nó (É um tanto ridículo este diminutivo que ela me arranjou. Mas sabe tão bem ouvi-lo!)?! Queres uma turrinha?
E chega a cara ao meu focinho, outrora belo mas hoje muito deformado pela doença, para fazermos este gesto antigo onde transmitimos mais do que carinho….

Não recordo já como foi a minha vida antes de aqui chegar. Sei que a minha mãe era uma lindíssima gata branca , Campeã da Europa tal como eu vim a ser poucos anos mais tarde, em França. O meu pai era um gatão vermelho, belíssimo segundo a minha amiga, mas que nunca possuiu a correcção necessária, nem a paciência, segundo parece, para andar em concursos. Mas, a verdade, é que não os recordo. Apenas sei o que me contam.

Saudades, não posso dizer que tenha sentido; nem tive tempo, de tal modo fui envolvido em mimos.

Aqui vim encontrar também outros gatos com quem me dava bem. Assim, nem isso estranhei.
Deste modo fui vivendo, rodeado de mimos esbanjados por todos até que, era já eu crescidinho, a minha amiga entendeu que era hora de procurar uma noiva à altura das minhas qualidades.
Aparentemente foi difícil. Não se encontravam assim por aí aos pontapés Bosques da Noruega que servissem. Em boa verdade, para a Donagata, nenhuma donzela estava à altura do seu campeão, eu.
Eu fui-me fazendo desentendido pois estava perfeitamente bem nesta doce vidinha. Mas, na realidade, bem percebi todas as diligências que entretanto iam sendo efectuadas. Ia ouvindo as conversas de olho meio aberto meio fechado mas de orelha bem arrebitada…

Hoje é a minha amiga que está ali, não de orelha arrebitada, claro, mas muito atenta às minhas necessidades… Como tudo muda! Apenas o carinho que me rodeia se mantém…

Um certo dia, não me lembro bem quando, eis que sou apresentado a uma belíssima ruiva que tinha vindo directamente da Oslo e que dava pelo nove de Eillen Av. Oseberg. Claro está que passou logo a ser Lili (esta mania dos diminutivos…) e, embora um pouco mais assustadiça do que eu, era meiga e rapidamente se integrou no seio familiar. Era belíssima, confesso, e rapidamente me deixou completamente rendido.
Reconheço que só nessa altura compreendi que há sempre algo mais que podemos ter a acrescentar à nossa felicidade mesmo quando julgamos que já temos tudo…
Também, mais tarde, entendi que, mais rapidamente ainda, se perde aquilo que julgávamos completamente certo…

Mas agora, que tanta coisa já perdi, posso dizer que sou feliz quase do mesmo modo. É claro que essa felicidade se ensombreia por vezes devido aos meus imensos incómodos, limitações e dores. Mas, sobretudo, quando lhe vejo a mágoa estampada nos olhos…

Sinto-me querido por todos quantos aqui vivem, pelos amigos, que me visitam e não se incomodam com o meu aspecto deplorável mas, sobretudo, por aquela que está ali na minha frente, agora absorta a teclar uns gatafunhos, mas que, na verdade, deve estar a pensar em mim. É cá um palpite que eu tenho, e também a forma como se vira para trás, me observa, me mima só com o olhar.
Conversamos imenso, à nossa maneira, e isso reconforta-me. E, na verdade, estou em crer que a ela também; fica menos angustiada após uma das nossas trocas de mimos…

Com a Eillen, meu amor de sempre, tive filhos belíssimos cobiçados por todos quantos os olhavam.
Dois deles vivem ainda comigo. Também não são já muito jovens e já vão tendo as suas mazelas. É normal. Quem, como eu, tem uma vida relativamente longa, vê os mais novos envelhecer também… É estranho… Sabem, nem me parece muito natural!
Enfim, a Eillen, essa linda ruiva nórdica, é que nos deixou cedo. Nunca mais consegui ultrapassar esse vazio embora tenha tido outras namoradas belíssimas. Mas a Lili… era a Lili. Não sei de que forma explicar o que não tem explicação. O sentir não se explica. E gato sente!!!

Aqui está ela. É já tarde. Já todos dormem. Porém está ainda aqui, a ler, e eu estou deitado ao seu lado. De vez em quando acaricia a minha cabeça, o meu dorso, as orelhas, a barriga… E embora eu sinta que o pêlo outrora sedoso e comprido, de padrão invejável (e efectivamente invejado por muitos), está áspero, isso não parece incomodá-la pois enreda de igual forma os dedos na sua aspereza, nessa massa enrodilhada em que se tornou o meu manto enquanto vai passando as páginas do livro.

Estou a ficar cansado e sonolento. Tudo o que faço é, por vezes, de tal forma penoso que me apetece desistir. Mas tenho saudades desta vida que recordo. Destes dezasseis anos de felicidade que partilhei com esta família.

Algumas vezes (e não foram poucas) servi-lhes eu de companhia e de consolo em momentos difíceis. Nunca abandonei ou ignorei ninguém quando precisou.
Hoje, são eles que cuidam de mim e me tentam minorar o que já não pode ser minorado de forma alguma.
Sinto que desistirei brevemente. Mas estou seguro de que nunca, mas nunca, estarei só.
E agora vou dormir mesmo enquanto ela, a Donagata, a minha amiga, está junto de mim e me vigia o sono.

Sou um gato feliz!

Nota: Este texto foi escrito na madrugada de 24 de Dezembro num momento em que cuidava do Zorba que já se encontrava muito mal. Deveria ter sido aqui colocado antes, mas só hoje, dadas as diversas circunstâncias adversas, tive coragem.

9 comentários:

Joana Vierde disse...

Eu acredito que há o céu dos gatinhos. Um céu cheio de mantinhas, sofás, ronrons, lareiras ou sol, amiguinhos imaginários, uns pardalitos para perseguir de vez em quando, água em fontes para se mexer com as patinhas, árvores de natal, comidinha boa sempre disponível (talvez se tornem ainda mais gordinhos neste céu), lixinho, coisas para destruir, máquinas de lavar para observar, trepadeiras sem fim, enfim.
Ele foi e continuará a ser feliz, porque não soube viver doutra maneira, e porque assim é quem é daí.
Beijinho muito grande, meu e da Maggie.

Anónimo disse...

Tão bonito Donagata. Um sorriso para o Zorba, directamente de cá de baixo.

Chatwinesque disse...

Era de facto um gato muito bonito. E teve uma longa vida, com a sorte de ter uma dona como tu. De certeza que foi muito feliz.

BlueVelvet disse...

Não tens ideia como me custou ler este texto até ao fim.
Mas obriguei-me a fazê-lo por ti, por ele e por um outro, meu, que passou pelo mesmo.
Deixo-te um abraço muito, muito apertado

Donagata disse...

Joana, tão lindo este teu comentário, e tão reconfortante,também...

Beijos para ti e um especial (de gato) para a Maggie.

Donagata disse...

Susana, obrigada pelo carinho.

Donagata disse...

Chatwinesque, obrigada pela confiança que depositas em mim como tratadora de gatos. Gosto deles, aliás de todos os animais e espero, de facto, proporcionar-lhes uma vida longa e feliz. Mas, já agora, olha que os teus são também uns fortunatos!!!!

Beijos

Donagata disse...

Bluevelt, obrigada pela compreensão. E sei também como te deve ter sido doloroso ler algo que te trouxe à memória coisas que, naturalmente, preferias não recordar mas não estão nunca esquecidas. Mas julgo que, por vezes, faz bem. É uma forma de catarse. Para mim, embora me custe muito escrever sobre os que partem, funciona como um desabafo.

Beijos.

Cristina Loureiro dos Santos disse...

O Zorba era um gato lindíssimo e tenho a certeza que teve uma vida muito feliz. Aliás, todos os teus gatinhos têm qualquer coisa de especial. Eu sei, que tive a sorte de ter um também. Um abraço grande, querida, sei que o Zorba era especial para ti.

Beijinhos :)