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quarta-feira, 26 de dezembro de 2012

Relembro



Relembro todos os Natais.

Os da infância, mais ingénuos e mais frios mas também cheios de tios que vinham de longe, e avós e rabanadas e filhós, e chocolate quente, e grandes mesas cheias de sons alegres e de cheiros coloridos e doces, e de chaminés com sapatinhos, e de bonecas e loucinhas de barro ou alumínio, e de gatos no borralho da lareira, e de pinheiro cortado a cheirar a resina e de brilhos e de sonhos, muitos sonhos! Um nunca acabar de sonhos.

Os que se seguiram, menos cândidos, mais desenganados. Tempos de verdades sem tempo para sonhos, de sermos poucos, de não haver chaminé, sapatinho sim mas sem chaminé. Sem os tios, avós poucos, mais silêncios e já não bonecas nem loucinhas. Ainda os cheiros, ainda alguma cor, ainda o gato sem borralho. Os brilhos mais embaciados como que com vergonha ofuscados pelos da rua.

Mais tarde, mais velha, outros sonhos, outras esperanças, mais casas, mais pessoas, menos avós, menos tios, outros tios, menos pai… mais distância, mais cheiros, mais luzes, mais brilhos, os primos, muitos primos, mais embrulhos, mais presentes e eu talvez mais ausente, sem me querer perder, a sentir a falta das loucinhas, do cheiro a resina, do frio bom, dos gatos no borralho.

Os de hoje, sem qualquer candura, muitos brilhos, e cores, e bolas, e sinos, e presépios e musgo e eu ainda não avó. Tia-avó apenas. A mãe (ainda), eu tia, eu mãe de três, os sobrinhos, não tios… os risos, o barulho, o tinir das louças já não loucinhas, as vozes, os filmes 3D, os cheiros, os sabores, os papéis, os sacos, os gatos no sofá, a lareira. Poucos sonhos, alguns, apenas, e sem fantasia, algumas ausências sentadas a meu lado, as brisas, as sombras, a chuva arrumada nas pálpebras. O desfazer da festa, o desfazer da ilusão, as cinzas que sobram na lareira…os olhos doces de um cão…

Relembro todos os Natais...

domingo, 16 de dezembro de 2012

Lua cheia


"Starry Night" by Vincent Van Gogh

A prata da lua toma de empréstimo a noite
 e acende-me um sorriso manso
que desliza 
e se funde no veludo do teu olhar.
Sentados na areia salgada
onde o murmúrio do mar se faz orquestra,
onde o vento nos segreda odores antigos ,
perdemo-nos um no outro.
Reinventamos a transcendência do amor 

sábado, 15 de dezembro de 2012

Não É Meia Noite Quem Quer” de António Lobo Antunes



Há já tanto tempo que não escrevo uma opinião acerca de um livro que, francamente, nem sei bem por onde começar. Ainda por cima um livro de ALA… Convenhamos que não é a coisa mais simples de fazer.

Confesso que, genericamente, gosto dos livros de ALA. Mais de uns, menos de outros, mas sempre me dão um prazer imenso ler. Pela qualidade da escrita e pelo desafio que, normalmente, comportam.

E, mais uma vez, assim aconteceu. Li-o há já uns tempos e foi daqueles livros que não me apetecia pousar. Não me importava até de o ler de novo, mesmo imediatamente a seguir (o que, regra geral, considero uma parvoíce tendo em conta a imensa multidão de livros bons que nunca terei tempo de ler). Além disso, desde logo cresceu em mim uma grande vontade de falar sobre ele, dizer o quanto me tinha agradado, o quão refrescante é ler um livro que nos preenche.

Pois bem, foi um caso de identificação desde o início. Em primeiro lugar talvez porque, em determinados aspectos, me seja fácil identificar-me com a personagem principal e compreendê-la. Temos idades parecidas e, também eu, em criança, ia passar férias numa casa, junto ao mar, à qual já não tenho acesso. Também eu teria gostado de me ter despedido dela, de relembrar tempos, de ressuscitar memórias…Mas, na verdade, termina aí mesmo o paralelismo das nossas vidas.

O livro, como outros de ALA, decorre num período de tempo muito curto; três dias. A narrativa inicia-se na sexta-feira e termina no domingo.
São apenas três dias na vida de uma mulher mas neles convergem cinquenta e dois anos de lembranças nas quais cabem alegrias, entusiasmos, sonhos, expectativas e desapontamentos.

Naquele rendilhado sublime de tempos e espaços que são, seguramente, marca incontestável do autor e que aqui atinge uma mestria desconcertante, vão desfilando as tardes de Verão passadas na praia com a mãe. As imagens do relacionamento patético dos seus pais. A sua amiga que vive na casa do lado e que, mais tarde, nem a reconhece nem lhe aceita a relembrança. Mas também a perda do seu filho que nunca foi. A sua vida de desesperança. A sua procura de conforto nos braços de duas colegas, que não deseja. A doença. A mutilação. O medo… 
Revive as viagens sentada no quadro da bicicleta do irmão mais velho, o mesmo que salta da falésia como o burro escanzelado que também dela resvalou. O balbuciar desajeitado do seu irmão surdo-mudo. A embriaguez do pai. O remorso da mãe. A loucura do outro irmão resultante das suas experiências em África, na guerra… 
A saudade de ser amada pelo marido. A frustração de ser professora numa escola, por aí. Os segredos que escrevia e que escondia no muro do jardim. A despedida. O fascínio pela falésia com os burros e as cabras de patas finas. Os melros, os muitos melros da casa, E, quem sabe, o fim.

Um livro fabuloso. Um livro a não perder sob pretexto algum.

Mais uma vez um momento alto do escritor António Lobo Antunes. 

terça-feira, 11 de dezembro de 2012

Chamas




Há algo de encantatório nas chamas
que irrompem lascivas envoltas em fumos.
São incêndios de uma quase solidão,
de um quase delírio, de uma quase embriaguez.
Há algo de arrebatador nas suas danças feitas de silêncios,
de respirares lentos, de beijos sem sonhos.
Há algo nas chamas que me arrebata os sonhos
e os transforma preguiçosamente
em silêncios opacos despidos de beijos.
Há algo de encantadoramente perverso nas chamas.

quinta-feira, 22 de novembro de 2012

Sonhei




Sonhei

Sonhei que voava

E comigo voavam as borboletas, os meninos, 
as bailarinas, os sonhos, todas as palavras improváveis 
de que são feitos os poemas

e tu…


Sonhei

Sonhei que sonhava

E sonhava como só as crianças sonham
E voava. E as borboletas, os meninos, 
as bailarinas, os sonhos e todas as palavras improváveis 
com que construímos os poemas e arrumamos vidas…

e tu voavas comigo.


Sonhei

Sonhei que acordava

E ao acordar voavam ainda as borboletas, os meninos, 
as bailarinas, os sonhos, as palavras 
e um dos mais belos poemas de todos os poemas belos com que eu podia sonhar:

Tu!

2012-02-08
Poema dedicado à minha amiga e ex-aluna Joana Moura Ferreira no dia em que completou 18 anos de imensa coragem.

sábado, 17 de novembro de 2012

Um poema



Nem imaginas como hoje
gostaria de escrever um poema.

Mas está a chover e
as pedras estão molhadas e tristes.
Desbotadas pelas levadas de pés anónimos
que as percorrem apressados.

Está a chover, sabes?
E assim, o poema não quer sair.
Faltam-lhe os melros, as rolas, as libelinhas
e as poucas flores choram grossas gotas de hálito azul.

Há gaivotas.
Estão em terra todas juntinhas  e arrumadas para o mesmo lado.
Mas gaivotas não são a mesma coisa…

Nem imaginas como hoje gostaria de escrever um poema…

terça-feira, 13 de novembro de 2012

Às malvas



Hoje apetecia-me mandar tudo às malvas.

Que é como quem diz que o que eu queria mesmo era o privilégio de fazer apenas aquilo que me apetece. 
Borrifar-me para as obrigações, para as conveniências, para os compromissos. Enfim, livrar -me de todas essas grilhetas que me azedam e me amarram os dias.

E, em vez disso, ocupar-me com alguma coisa lúcida…
Ou, ainda melhor, não me ocupar com absolutamente nada e deixar – me vadiar, completamente absorta, pelos caminhos mais recônditos da imaginação.

Mas não será a realidade um conveniente produto da imaginação?

Como está pragmática a minha imaginação!
De tão praxista não lhe consigo encontrar uma pontinha que seja de fantasia; dessa irrealidade bonita que a devia compor.

Resta-me o desânimo!

Mas será mesmo que já não divisarei o devaneio? Já não conseguirei ascender a esse querido patamar que me permite o delírio?
Que imbecilismos são estes que surgem de todos os lados e me amarram a uma realidade boçal que não me deixa voar? Ou a uma imaginação amarrada, também ela, e que não se permite criar-me outra realidade, superior, mais tolerável ?!

Hoje vou recusar esse marasmo!

Hoje vou mandar tudo às malvas!!!!

domingo, 11 de novembro de 2012

Grito


"O Grito" de Edvard Munch

É este sentimento de impotência
que me incendeia de soslaio.
É esta incapacidade de soltar as amarras do alento
que me segreda raivas que me subjugam.
É este medo, esta angústia que me assola
me paralisa, me aniquila, me morde as entranhas
que me faz gritar de medo. 
Espreito o amanhã
apenas com o canto mais secreto do olhar. 

terça-feira, 6 de novembro de 2012

Hoje o mar


Fotografia tirada em Matosinhos

Hoje estava lindo o meu mar.

Roubou-me o olhar que vagueava indeciso
por flores que já não há,
por pessoas cinzentas que passavam cinzentas
em poses cinzentas,
por aves esquivas que voavam distantes e cinzentas...

Estava lindo o meu mar hoje!

Roubou um ou dois raios ao sol
que, inflamados, fenderam as nuvens
e se espreguiçaram na prata das águas.

Tão lindo que estava o meu mar hoje!

terça-feira, 9 de outubro de 2012

Tanto tempo



Tanto tempo, amor!

E todos os risos, os carinhos, as descobertas,
os segredos, os medos, as juras…

Tanto tempo, amor.
E as tuas mãos, os teus beijos, o teu calor
e a saudade na ausência de ti…

Tanto tempo de sonhos, de luares,
de sussurros de mel …
Tantas conquistas.

Tanto tempo nós…
Tanto tempo meu amor.

quarta-feira, 26 de setembro de 2012

Sonho




Há muito que o livro jazia esquecido, pousado no colo.
Afagava-o distraída, talvez por hábito.
Sentia-lhe a textura espessa e inalava
quase com volúpia
aquele odor que me aconchegava e ao mesmo tempo
me arrastava para voos que nunca havia voado.
Há muito que o cigarro não passava de uma fina cinza soprada pela brisa quente.
Há muito que o sonho soltara amarras
e vogava muito para além da letargia que me consumia;
muito para além das areias quentes que respirava;
muito para além do mar que se confundia em horizontes de azul;
muito para além dos círculos erráticos das aves…
muito para além dos devaneios gravados no papel.

Há muito que o sonho era eu, apenas eu,
enrolada na saudade de te amar.

quinta-feira, 23 de agosto de 2012

"Lost Boy"

Da série "Lost Boys" de Miguel Ministro


Sente no rosto o poder avassalador do punho que o golpeia.

A dor é imensa mas não importa. A sua ausência é muito mais cruel.

Habitualmente não sente nada, não deseja nada, não aspira a coisa nenhuma.

Não ama nem odeia.

Vagueia ausente nessa ubíqua almofada do desapego.

Nesse marasmo perverso que o persegue mas já não o inquieta.

Indiferença? Solidão? Tédio? Apenas isso o rodeia.

Medo não. Medo não sente. Aliás, não sente nada.

Apenas esse imenso enjoo de nada sentir…

sexta-feira, 17 de agosto de 2012

"O Teu Rosto Será o Último" de João Ricardo Pedro


Muito, muito bom.

Uma agradabilíssima surpresa vinda de um autor estreante mas que, seguramente, virá a dar muito que falar.

Comecei por gostar muito da forma de escrita de João Ricardo; forte, se bem que bonita, e com muito carácter. É uma escrita com identidade própria. Utiliza recursos e vocábulos que, esgrimidos de outra forma ou em contextos diferentes poderiam ser vulgares ou maçadores mas que, no seu caso, enriquecem e dão cunho próprio à escrita.

Depois, gostei da estrutura do romance porque nos conta, de facto, uma história mas nos permite ter uma parte activa na sua construção. Pelo menos deixa-nos com essa ilusão.

A narrativa é composta por um conjunto de episódios aparentemente soltos, autónomos, mas que se vão encaixando de modo a criar para nós uma história coesa.

Uma história sem pontas? Não creio. Julgo que nos compete a nós atar algumas. Mas, mesmo assim, uma boa história impregnada de momentos alegres, disparatados, tristes, de grande dor, enigmáticos, e aqueles absolutamente corriqueiros, do quotidiano de qualquer um. Uma história complexa acerca de um conjunto de pessoas que constituem uma família, mas também a história de cada um em particular sem, contudo, se perder o sentido do todo.

Eu vejo como personagem fulcral desta narrativa Duarte. Não sei se é a personagem que suscita sentimentos mais fortes, a que nos fica a martelar na memória. Porém é aquela que vai atravessando todo o livro; aquela com quem vamos crescendo e tendo experiências de todo o tipo; vivendo. É através dela que vamos conhecendo três gerações de uma família bem como de mais umas tantas pessoas que a rodeiam.

Todavia, e poderá parecer paradoxal, Duarte é uma personagem enigmática. Dotada de grande talento musical (que rejeita), vai vivendo em quase constante interrogação e por isso vai-se descobrindo também (sobretudo?) através do que as outras personagens vão desvendando sobre ele.

O livro inicia-se no dia vinte e cinco de Abril de 1974 mas começa muito antes, ainda no período da ditadura, quando Policarpo vende a propriedade, numa aldeia no sopé da Serra da Gardunha, ao seu amigo e médico Augusto Mendes, para sair do país.

Parte muito importante na narrativa são as cartas que Policarpo envia todos os anos ao seu amigo, aliás como havia prometido, até ao fim da sua vida.

Continua por Queluz onde António, filho de Augusto Mendes, vive com a sua mulher que havia conhecido antes de sair para uma das suas comissões na guerra do ultramar e tinha aceitado ser sua “madrinha de guerra” (quem é que actualmente sabe bem o que é isso???) e o seu filho Duarte.

E é assim, entre as faldas da Gardunha, Queluz, e todos os locais que as cartas de Policarpo nos deixam vislumbrar, que se vai apresentando perante o leitor um puzzle subtil onde as mais insignificantes peças (os episódios mais banais) se vão revelar fulcrais para o desenrolar da narrativa.

A não perder mesmo!

terça-feira, 14 de agosto de 2012

Tears


Imagem: "An ocean of tears" daqui


A deep sadness came to stay and made her bed in my most insightful feelings.

And now I don’t know what to do with all these tears …

Maybe an huge ocean of my own where I’ll slowly go drown.

segunda-feira, 13 de agosto de 2012

"The Sense of an Ending" Julian Barnes


Acabei ontem de ler este livro e, se bem que o considere um livro bom, ficou um pouco aquém das minhas expectativas motivadas, obviamente, por críticas que a ele se referiam de forma muito abonatória.

Li-o na sua versão original (em inglês) pelo que nem sequer poderei justificar essa pequena desilusão por perdas na tradução. Pelo contrário, poderá talvez, é dar-se o caso de não conseguir apreender algumas subtilezas da língua dado que a não utilizo comummente.

É um livro reflexivo e interessante, claro. Foi “Man Booker Prize 2011”…

Contudo não foi um daqueles livros que me agarrou de uma forma apaixonada. A verdade é que também não tive vontade de o largar…

Conta-nos uma história de vidas aparentemente normais, mornas e prosaicas. Até que, com a continuação da leitura se vai percebendo que, afinal, não são nem mornas, nem prosaicas e, seguramente, nada comuns.

Todo o livro está eivado de considerações filosóficas e de reflexões de vida mas que se inserem perfeitamente no contexto narrativo, sem que apareçam como conceitos filosóficos de pacotilha, inseridos a martelo, para eruditizar a coisa.

Aliás, creio ser exactamente a pertinência destes que faz com que o livro não seja uma história mais ou menos vulgar (em termos de enredo literário) contada de forma assaz ”soft”.

Temos Tony Webster, o narrador, que, agora em plena meia-idade, nos começa a contar a sua história e dos seus três amigos mais chegados, em plenos anos 60 quando eram um grupo de adolescentes.

Estamos na primeira de duas partes que constituem o livro. Dos outros dois amigos quase não reza a história, são quase totalmente irrelevantes, meros adereços, mas com Adrian Finn tudo é diferente.

Adrian é aquele amigo que se destaca por uma miríade de razões. Todos tivemos ou conhecemos alguém assim; alguém que todos disputávamos para “melhor amigo” e que nos custava ter de partilhar. Era mais, sério, mais inteligente, mais à vontade na exposição das suas ideias perante professores e colegas, aquele cujas reflexões e conclusões eram admiradas e, enfim, incontestadas. Era também o que parecia ter mais certezas e, além disso, um aluno exemplar.

Contudo era um grupo de adolescentes comuns, sedentos de vida, de sonhos, de sexo, de fantasia.

Chega a altura de irem para a faculdade e, enquanto Anthony a frequenta em Bristol, Adrian vai para Cambridge e vai-se, paulatinamente, perdendo o contacto que todos haviam jurado manter para o resto das suas vidas.

Tony mantém uma relação com Verónica até ao final do seu tempo de faculdade. Não dá certo e dá-se a ruptura. Acontecem alguns episódios insólitos nesta relação, mas sem grande interesse (pelo menos em aparência).

Entretanto é informado por Adrian que é agora ele quem mantém uma ligação com Verónica. Responde a Adrian sem dar muita importância ao assunto e, tempos mais tarde recebe a notícia do suicídio do seu amigo.

Estranha-o, reflecte muito em torno deste acontecimento, mas acaba a primeira parte contando, muito brevemente como se desenrolou depois a sua vida até chegar ao que é hoje; uma pessoa de meia-idade, divorciado, se bem que mantendo relações cordiais com a sua ex-mulher, com uma filha, afastado já das suas obrigações profissionais mas mantendo uma rotina de ocupações.

Como dá para perceber nada de especial, nenhuma novidade, nada que certamente não tenha acontecido a todos nós, os de meia idade (com suicídio ou sem suicídio à mistura) … Que é feito dos sonhos da adolescência? Da certeza de que íamos ser donos do Mundo?

E então entramos na segunda parte do livro em que Tony recebe uma comunicação de uma advogada que o informa que é o herdeiro da recém-falecida mãe de Verónica. Essa herança consiste numa importância em dinheiro e no diário de… Adrian.

É então a partir daqui que, no meu ponto de vista, o livro começa verdadeiramente a ter interesse. É a partir daqui que Anthony vai pôr em causa a “exactidão” das suas memórias. É aqui que elas são colocadas numa outra perspectiva, a do futuro. É aqui que já não sabe o que realmente se passou e o que a sua memória seleccionou para manter. É aqui que se surpreende…

Foi aqui que, também eu, fiquei com algum receio de reperspectivar as minhas memórias…

A ler.

domingo, 12 de agosto de 2012

O Meu Poema

Aguarela da série "Mascaras" de Miguel Ministro

Por vezes as palavras demoram a acordar.

Depois, surgem sem chama, inócuas, desnecessárias.

Negam-se a fazer sentido.

Não me lêem. Não me adivinho nelas.

Preciso de as iludir, de as rasgar, de lhes arrancar as máscaras,

de lhes soprar os fumos, as névoas, o que nelas é breve.

De as soltar dos silêncios aparentemente anódinos

e obrigá-las a estar aqui sem limite, audazes, maliciosas, incendiadas

e então, só assim, poderá nascer o meu poema.

quarta-feira, 8 de agosto de 2012

"O Rastro do Jaguar" de Murilo de Carvalho


Um livro que há já uns tempos tinha intenção de ler.

Foi prémio Leya 2008 o que, à partida, lhe confere algum interesse.

Acabei por lê-lo emprestado e, por isso, teve prioridade em relação a uma extensa pilha que se vai acumulando à minha volta.

Foi-me emprestado como sendo um livro extraordinário daí a sua leitura imediata.

Pois bem. Eu não o catalogaria no rol daqueles livros que considero verdadeiramente extraordinários mas é, sem dúvida, um bom livro.

Estamos em Congonhas do Campo algures em Minas Gerais no virar do século XIX. Aí, o nosso narrador, Pereira, contemplando as estátuas dos “profetas” esculpidas em pedra sabão, no adro da igreja pelo “Aleijadinho” (António Francisco Lisboa), e saudoso da sua amada Francisca, propõe-se narrar a vida de seu amigo Pierre, dele próprio e de algumas pessoas cujas vidas tocaram ou que vieram a fazer parte deste riquíssimo percurso que foram as existências de ambos.

E aí vamos sendo transportados desde Paris onde ambos eram elementos do exército até ao Brasil (depois Argentina, Paraguai…) onde aportamos exactamente num período histórico conturbado em que se desenrola uma guerra contra o Paraguai (guerra da “Tríplice Aliança” uma vez que se haviam aliado a Argentina, o Uruguai e o Brasil para combater o Paraguai que tinha invadido a província brasileira do “Mato Grosso”).

É um livro baseado em factos reais, muito bem documentado e que nos conta bastante pormenorizadamente o já referido conflito e nós dá, em imagens muito vívidas, conhecimento dos momentos duros de uma guerra que foi, em muitos momentos, sangrenta, desumana até ao limite do concebível. Menciono, por exemplo, no final, o massacre das crianças-soldados…

Mas, quanto a mim, esta não será a perspectiva mais importante do livro. Pelo menos não foi aquela que mais me impressionou, se bem que tenha apreciado saber mais acerca deste momento histórico. No meu ponto de vista o que aqui ressalta é a situação dos povos autóctones da região; a perda inexorável dos seus espaços, das suas raízes e, consequentemente, da sua identidade enquanto povos. Alguns deles preferindo o extermínio à aculturação.

É o caso dos Aimoré (Botocudos) que vamos seguindo, com Pierre tentando encontrar o povo de Firmiano que havia sido levado daquela zona, anos antes, por Saint’ Hilaire, mas também buscando as suas origens, a sua identidade.

Essas vão ser mais tarde encontradas junto do povo Guarani com quem Pierre se identifica e vem a ser por ele considerado um dos “adornados”, o mais importante profeta, aquele que o povo aguardava, tal como profetizara Ñamandu, o seu deus, para os conduzir em glória `à”Terra Sem Males”: o Jaguar

Pereira vai-nos narrando todo este passado recorrendo à sua memória, é certo, mas sobretudo a cartas e documentos escritos por Pierre, por Firmiano e por ele, dado que passou todo esse tempo como repórter de guerra a soldo do “Le Figaro”.

Ao mesmo tempo vai-nos deixando momentos de um presente nostálgico, ora contemplando os seus profetas, ora abraçando o “fantasma” da sua adorada Francisca. Presente que o leva a reencontros com personagens como Mateus e Benedito.

Presente que o vai levar a protagonizar, a ele próprio, uma demanda improvável.

De realçar a importância que aqui toma a alusão à peça de Wagner “Tanhauser Ouverture” que Pierre adorava, que tocou na Ópera de Paris e que, para mim, funciona quase como uma metáfora em relação à sua vida.

Um livro muito bom, sem dúvida, muito preciso, precioso no que concerne a documento histórico, bem escrito, numa linguagem fluida e agradável.

A ler, sem dúvida.

segunda-feira, 6 de agosto de 2012

A Borboleta

Borboleta castanha

Era uma vez uma borboleta.

Era uma borboleta feia. Daquelas sem cor, de asas curtas e grossas e corpo pesado.

Ainda assim uma borboleta.

E porque quando dizemos “borboleta” nos lembra poesia,

tal como flor, estrela, luar, silêncio,

decidi pegar nela e enfeitar um poema.

Mas a borboleta era feia.

As asas eram feias. O corpo era grosso e pesado.

E girava desengonçadamente pela minha cozinha.

Mesmo assim custava-me desistir dela

e então

quis colocá-la aqui e compor um poema feio.

Estava prestes a fazê-lo quando o Envie, o meu gato vermelho, saltou e a comeu.

Compreende-se. Ele não gosta que eu faça poemas feios…

quinta-feira, 2 de agosto de 2012

Viver

"The Triunph of The Death" by Pieter Bruegel The Elder


Misteriosos pensamentos estes que me assolam em dias ocos.

Assustadores porque estranhos e inesperados,

estranhos de tão assustadores no vazio opaco desses dias.

Pensamentos que se me agarram, me prendem a vontade

para, lenta e inexoravelmente, se insinuarem no mais recôndito de mim.

Afinal, viver pouco mais é que um pequeno ruído distante…

Um pequeno barulho, ao longe, feito segredo.

segunda-feira, 30 de julho de 2012

"Explicação dos Pássaros" de António Lobo Antunes


E pronto. Lá terminei outro livro de António Lobo Antunes que, tal como todos os que já li, me provocou um prazer enorme.

Este, “Explicação dos Pássaros”, é já de 1981, um dos seus primeiros mas que, por qualquer razão, não havia ainda lido.

Adoro ler.
É enorme o prazer que tiro da leitura de um bom livro. E depois há o acto de ler ALA e o gozo incomensuravelmente maior que, numa grande parte das vezes, me dá lê-lo.

Será o desafio que a sua forma de escrita propicia? Será a poesia que lhe está intrínseca? Serão as personagens tão físicas, tão reais, tão consistentes que quase as podemos sentir?
Não sei. Apenas posso dizer que já lhe sinto a saudade.

Em “Explicação dos Pássaros”, somos levados a acompanhar Rui S. naqueles que irão ser os últimos quatro dias da sua vida. Quatro dias que nos levam a perceber uma existência pejada de rupturas, de perdas, de frustrações, de buscas do seu espaço social, da procura de si próprio.

Rui é alguém que sente não pertencer a lugar nenhum quer social quer familiar.
Não pertence à Lapa, casa de família onde o seu pai pontifica e o assombra (?). Não pertence ao mundo de Marília nem nunca pertenceu ao de Tucha ou mesmo ao dos filhos, distantes. Não pertence ao mundo da casa da D. Sara onde tem por vizinho, entre outros, o Sr. Esperança, “barítono de craveira internacional” que trabalhava num circo e havia sido casado com uma amestradora de rolas…
Enfim, alguém que não tem lugar, nem mesmo (sobretudo) em si próprio.

Rui tem uma grande obsessão pelos pássaros, pela sua explicação… Talvez seja o resultado do único momento em que se sentiu bem no seu espaço, que se sentiu parte integrante de algo; quando em miúdo, na quinta onde passavam as férias e onde ainda eram uma família feliz, sentado nos joelhos do pai, lhe havia pedido para lhe explicar os pássaros.
Verdade? Fantasia? Necessidade de em algum tempo em algum lugar ser ele mesmo? A verdade é que este momento é evocado recorrentemente ao longo da narrativa.

Rui era professor de História, não porque fosse esse o seu “lugar”, mas apenas porque não tinha (não queria ter) espaço no que eram os negócios do pai.


E assim, presos a um estilo a que ALA já nos habituou (e que noutros livros posteriores tem levado a limites aqui ainda insuspeitados), fragmentando e entrelaçando tempos, personagens, acções e reflexões que por sua vez se vão entrosando num universo de metáforas, num mundo por vezes até irreal, onírico, vamos repensando toda uma vida enquanto viajamos com Rui e Marília para Aveiro, em vez de para Tomar, e com eles contemplamos, em silêncio, as águas oleosas da ria e, sobretudo, as gaivotas que a sobrevoam.

Aí assistiremos às últimas rupturas.
A que advém do próprio facto de desistir do congresso a que deveria ir em Tomar, a que acontece com Marília, e a consciencialização da sua vida que o leva a não ter outra saída que não a ruptura com ela própria.


Há uma metáfora particularmente importante que atravessa toda a narrativa: o circo. O circo que, a meu ver, simboliza a crueza da vida, as concessões que nela fazemos, a crueldade, tudo o que é deprimente e não o circo maravilhoso das luzes. Efectivamente é tudo aquilo que se esconde por detrás delas, o que é amargo, deprimente.
O circo que vai ganhando importância à medida que nos vamos aproximando do final. O local em que o protagonista é personagem e espectador atento e, às vezes, até surpreendido. O circo onde se cruzam todas as vozes, de forma quase feérica no final, e nos são dados a conhecer os múltiplos pontos de vista acerca de tudo o que foi acontecendo em torno de Rui.

Enfim, uma narrativa extremamente rica que me deixou, uma vez mais, de água na boca.
A não perder.

domingo, 29 de julho de 2012

As palavras


Imagem daqui
Procuro no rumor das ondas palavras que me expliquem.
Encontro apenas o frio oleoso das algas
e o movimento translúcido das águas revoltas e salgadas,
desabitadas de sonhos, novos ou velhos,
ocas de ilusões, esvaziadas da fantasia.
Procuro no rumor das ondas palavras que me decifrem,
as extensas listas de palavras que devem existir para que me entenda…
E tudo o que ouço é um imenso fragor feito de silêncios.

sexta-feira, 27 de julho de 2012

Vazio


"Fotografia sem título" de César Augusto Romão


Hoje vou fechar os olhos
e esperar que o rosto das palavras
me preencha este vazio imenso.
Sobrarão apenas as memórias
suspiradas pelo silêncio. 


domingo, 15 de julho de 2012

Depois


"Shadows on sea" Claude Monet

Hoje apeteceu-me ir à praia e despentear as ondas.
Olhá-las, senti-las, e dançar longos silêncios.
Depois, incendiá-los em movimentos suados
e rasgá-los ali mesmo. Naquele exacto lá,
onde já nada sobra para o arrepio de imaginar que para nós,
o depois, pode não ser já o sempre.

segunda-feira, 9 de julho de 2012

“O Prisioneiro do Céu” de Carlos Ruiz Zafón



Claro que estava curiosíssima acerca deste novo livro de Zafón que me permitiria revisitar o “cemitério dos livros esquecidos” bem como personagens maravilhosas que conheci pela primeira vez em “A Sombra do Vento”.
Estava tão curiosa e tão ansiosa que nem esperei pela edição portuguesa. Li-o mesmo em castelhano que, diga-se de passagem, me dá menos trabalho do que ler traduções que obedecem ao AO (pelo menos para já, será uma questão de hábito, espero).
Pois bem, considero que li mais um excelente livro escrito por um autor de eleição.
Contudo desviou-se um pouco daquilo que eu estava à espera.
Não pretendo com isto dizer que tenha gostado menos do livro pelo facto de estar escrito num registo visivelmente diferente dos dois anteriores que compõem, para já, esta trilogia.
Neste romance Zafón forçou muito menos a parte emotiva. Ao leitor é dada a possibilidade de esmorecer um pouco a tensão com que encara a leitura. Por outro lado é menos evidente o pendor gótico que tem caracterizado os outros livros do autor. É muito visível quer nas simbologias utilizadas quer até na verosimilhança do que escreve.
É um livro em que o presente se reveste de uma importância menor do que aquilo que nos é contado pelo fabuloso personagem Fermin Romero de Torres e que diz respeito à sua vivência na prisão no “castillo de Montjuic” antes de surgir como mendigo em Barcelona. É essa narrativa que nos prende e que nos leva a compreender melhor alguns aspectos um pouco mais obscuros quer de “A Sombra do Vento” quer (e sobretudo) de “O Jogo do Anjo”.
O presente, contudo, creio que será um importante factor para a continuação desta saga. Tudo está em aberto. As personagens ainda mexem…  Além disso, este presente ligeiro, até bem-humorado, é a “almofada” que atenua o exagero emotivo, o tal pormenor literário que dá algum descanso ao leitor.
Pode-se pensar que, pelo facto de os três livros que refiro estarem interligados pelos seus personagens, pelas suas vidas, pela enorme influência dos livros, por vezes estranha, pelo “cemitério dos livros esquecidos”, só farão sentido lidos na sequência certa.
 Ou que não se entendem lidos em separado.
Nada disso.
Se bem que haja esse entrosamento de vidas e essa continuidade (e até pormenores que só se vêm a descobrir mais tarde) e que para todos haja um leit motiv “o cemitério dos livros esquecidos”, cada um é um romance por si só. Contém uma unidade narrativa com todo o sentido. Podem ser lidos pela ordem que muito bem entendermos pois estamos sempre a ler muito boa literatura plasmada em interessantíssimos romances.
Não sei o que esperar do próximo… A verdade é que noto neste um ponto de viragem. Será para valer???
Mais um que recomendo.

sexta-feira, 29 de junho de 2012

Não


Julguei que a tinha lá ao pé.
Ou então, presa nos lábios
em precária suspensão.
Cuidei que a tocava até,
sem pudor, sem incerteza,
instintiva ali à mão:
a palavra, the word, le mot…
Julguei que estava decidida.
Mas afinal… ainda não…

terça-feira, 26 de junho de 2012

"Uma Mentira Mil Vezes Repetida" de Manuel Jorge Marmelo



- “Já lhe falei da história do homem-zebra?
Quer ouvir? Conto-lha tal como Marcos Sacatepequez a escreveu.”

Assim começa, desta forma prontamente cativante, o último livro de Manuel Jorge Marmelo lançado no início do último mês de Outubro pela Quetzal.
E é assim que os companheiros de autocarro do nosso contador da história vão conhecendo e entrando, com os personagens, nas muitas histórias que por aqui se vão desdobrando.
O criador de algumas destas é Óscar Schidinski, escritor húngaro, judeu, autor do livro “A Cidade Conquistada” com que o nosso narrador se passeia ostensivamente pelos transportes públicos da cidade do Porto.
 Apenas um senão, o livro é falso e o autor uma invenção deste outro, do nosso narrador. Se é verdade que existe o objecto/livro, devidamente montado com um milhar e qualquer coisa de páginas, bem encadernado e vistoso, é também verdade que este não passa de um molho de páginas copiadas de trabalhos diversos de outros autores, organizadas aleatoriamente sem qualquer tipo de continuidade. E o autor, Schidinski, não passa de uma personagem que o nosso narrador vai compondo ao sabor da sua vontade bem como da necessidade de alguma coerência por respeito para com os seus companheiros/ouvintes de viagem.

É o primeiro livro que leio de Manuel Jorge Marmelo e confesso que fiquei absolutamente rendida.
Encontrei um romance que desafia a estrutura do romance tradicional o qual, como sabemos, reclama a existência de uma história como suporte, uma história pré-definida. Em “Uma Mentira Mil Vezes Repetida” o enredo é a construção do próprio romance. Este surge perante os nossos olhos sem qualquer pré-concepção (pelo menos aparente).
No meu ponto de vista deparei-me com um texto auto-reflexivo brilhante. Um texto que ironiza a sua própria condição de texto escrito numa linguagem literariamente muito cuidada, se bem que descomplicada .

Bom, voltemos ao que interessa, o livro. Temos um narrador que, com o intuito de escapar a uma vida de anonimato inventa um livro porque inventá-lo é, para ele, muito melhor do que escrevê-lo. Inventa um escritor e um universo de histórias passadas um pouco por todo o mundo que vai contando aos seus companheiros de jornada. Mais atentos uns, mais alheios outros, em todos julga o nosso narrador deixar a semente do inesquecimento.
Assim vamos partilhando o autocarro com ele e com Marcos Sacatepequez, escritor de Belize cujo corpo, após a sua morte, acaba por ficar insepulto e à deriva por esses mares; com o homem-zebra produto do imaginário literário do personagem anterior; com Albrecht marinheiro amaldiçoado para sempre por se ter cruzado com o cadáver de Marcos; com o carteiro de Granada que troca a correspondência toda; com Yvan Hache pintor expressionista com uma mania incomum; com Afonso Cão; com Cassiano Consciência; com Oscar Schidinski, escritor húngaro, judeu, autor do livro “A Cida…

Enfim, como podemos imaginar um nunca acabar de histórias que se entrelaçam umas nas outras ao sabor da vontade do nosso narrador até que a vontade se consome e a história se solta e se prende a uns olhos rasgados como os de uma mulher persa…
Não menos interessantes e, consequentemente, inultrapassáveis são as reflexões do nosso narrador que fazem a ponte entre a divagação literária e o real; entre o que pode ou não ser invenção e aquilo que nunca o é, as nossas vivências, os nossos anseios, os paradoxos do nosso quotidiano.

Mais um livro a não perder, mais um jovem valor que se confirma no panorama literário nacional.

Também publicada na Revista-Me # 5

domingo, 17 de junho de 2012



Willie G. "aguarela"
Quase

Eu estava quase triste.
o barulho que as palavras causavam
ao embaterem, mudas, em meus lábios
provocavam aquele quase incêndio de silêncio,
aquela quase agonia.

Eu estava quase triste.
Contudo forçava um sorriso quase gordo
que criava aquele quase fogo de solidão,
aquela quase ilusão desfeita em fumo.

Eu estava quase triste.
Quase eu…

sexta-feira, 1 de junho de 2012

Em louvor das crianças



Pintura com cotonete (feita por crianças) 

Se há na terra um reino que nos seja familiar e ao mesmo tempo estranho, fechado nos seus limites e simultaneamente sem fronteiras, esse reino é o da infância. A esse país inocente, donde se é expulso sempre demasiado cedo, apenas se regressa em momentos privilegiados — a tais regressos se chama, às vezes, poesia. Essa espécie de terra mítica é habitada por seres de uma tão grande formosura que os anjos tiveram neles o seu modelo, e foi às crianças, como todos sabem pelos evangelhos, que foi prometido o Paraíso. 
A sedução das crianças provém, antes de mais, da sua proximidade com os animais — a sua relação com o mundo não é a da utilidade, mas a do prazer. Elas não conhecem ainda os dois grandes inimigos da alma, que são, como disse Saint-Exupéry, o dinheiro e a vaidade. Estas frágeis criaturas, as únicas desde a origem destinadas à imortalidade, são também as mais vulneráveis — elas têm o peito aberto às maravilhas do mundo, mas estão sem defesa para a bestialidade humana que, apesar de tanta tecnologia de ponta, não diminui nem se extingue. 
O sofrimento de uma criança é de uma ordem tão monstruosa que, frequentemente, é usado como argumento para a negação da bondade divina. Não, não há salvação para quem faça sofrer uma criança, que isto se grave indelevelmente nos vossos espíritos. O simples facto de consentirmos que milhões e milhões de crianças padeçam fome, e reguem com as suas lágrimas a terra onde terão ainda de lutar um dia pela justiça e pela liberdade, prova bem que não somos filhos de Deus. 

Eugénio de Andrade, in 'Rosto Precário'

domingo, 27 de maio de 2012

Irremediavelmente aqui


"Penumbras" de Karina Gallo

Cerro os olhos com tal força
que julgo não mais poder abri-los.
Não importa.
Importa apenas deslembrar que estou aqui.
Atordoar os cheiros que se insinuam,
os sons que não quero ouvir,
os toques que não quero sentir.
Apenas me quero aceitar só.
Só e longe…
As imagens, porém,
nascem vívidas, feias, cruas, na tela das pálpebras,
sem que uma sombra,
ou mesmo uma penumbra me engane delas.
E afinal estou aqui.
Irremediavelmente, inexoravelmente aqui.
E lavro diligentemente todos os segundos
de um tempo que não quero meu.

quinta-feira, 24 de maio de 2012

Adoro reticências


"Apolliny" Bosques da Noruega Gatil Moochieland

Adoro reticências…
Também gosto muito de gatos…
Na verdade gosto muito mais de gatos do que de reticências…
Julgo que apenas o chocolate me entusiasma mais do que as reticências e me sacia mais do que os gatos…
ou não…
os gatos preenchem-me de uma forma que o chocolate não consegue…
O chocolate sacia-me até ao enjoo…
É. Gosto de ambos.
Mas gosto muito mais dos gatos e da carícia dos seus pelos que não me enjoa…
Gosto mesmo muito de gatos…
E adoro reticências...

sábado, 19 de maio de 2012

Boicote


Deve ser por não publicar comentários de livros que vou lendo há já muito tempo que aqui o blogue me está a boicotar.
Por mais que tente não consigo tirar estas linhinhas brancas que sombreiam as frases do texto....
Também não me apetece tentar mais.
Pois que impere o sombreado a branco e não se fala mais nisso!

"Memórias de Adriano" de Marguerite Yourcenar


Nunca havia lido nada de Yourcenar o que considero, de certa forma, uma falha na minha cultura literária. Assim, a conselho de um primo decidi iniciar-me na autora com as “Memórias de Adriano”.

Pois, muito obrigada Zé Paulo pelo excelente conselho. É, na minha opinião, um daqueles livros que não devemos deixar de ler.

Já se percebeu, naturalmente, que adorei o livro.

Este romance pretende ser a biografia de Adriano, imperador dos territórios romanos entre 117 e 138 DC, contada na primeira pessoa.
Através de uma extensa carta que envia ao sucessor por ele escolhido, Marco Aurélio, Adriano vai fazendo desfilar toda a sua vida; as suas façanhas heróicas, a sua postura perante as lides da governação, as suas viagens, o seu gosto pelo mundo helénico, o carinho e o entendimento conseguido com Plotínia esposa de Trajano mas, sobretudo, os seus afectos.
Aliás mesmo os aspectos mais prosaicos da sua vida de imperador são aqui referidos de uma forma extraordinariamente apaixonada dando aquele vislumbre dos pressentimentos, das sensações, das impressões, das incertezas que se alojam por trás das grandes decisões que, geralmente, nos são apresentadas de forma fria, exageradamente pragmática.

Yourcenar consegue aliar de forma magistral (se calhar já o deveria saber…) o que o documento histórico e a ficção têm de melhor.
Se bem que não deixe de ser um romance com tudo o que lhe é permitido em termos de ficção de forma a torná-lo excelente sob o ponto de vista estritamente literário, não deixa de ser um testemunho histórico de rara fidelidade que nos põe a nu a vida deste príncipe que foi um dos imperadores de excelência do período do Império Romano.

Satisfaz inteiramente duas das minhas paixões:
a literatura, o prazer de ler um livro bem escrito que nos prende pelo simples prazer de o ler e
a história se tivermos em conta a forma mais humana, com já referi, de nos apresentar uma época sem, no entanto, se desviar do rigor histórico em relação ao qual Yourcenar foi extremamente exigente.

Atestam-no os cerca de trinta anos que a autora levou a decidir-se pela escrita do livro bem como a minuciosa investigação a que se dedicou durante todo esse tempo para o vir a concluir. A edição que li possui um anexo de cerca de quarenta páginas em que a autora nos explica os vários processos por que passou a escrita deste livro bem como cita todas as fontes utilizadas para o fazer. E são muitas, algumas raras e todas de grande fiabilidade.

Se o não tivesse lido, efectivamente, seria uma mulher intelectualmente mais pobre.